Desconfio de que eu deva ter, em meu mapa genético, algum pedacinho de material oriundo de uma traça. Nem faço idéia de como isso possa ter acontecido. Não acredito que a origem tenha sido ocasional, acidental, sendo mais provável que seja romântica mesmo. Pelo histórico que conheço de parte da família, dos meus antepassados, o amor pelo papel é algo bem antigo.
Só para não ir muito longe, posso vislumbrar os sintomas disso no comportamento dos meus dois avôs. Um deles, o materno, estudado, assinava jornais, revistas, fazia parte do Clube do Livro e tinha um escritório cheio de todo tipo de papel. Curiosamente, muitos anos depois, eu me vi assinando o mesmo jornal, as mesmas revistas. Meu avô paterno, por outro lado, não tendo tido a oportunidade de estudar muito, seguiu, só meio alfabetizado, lendo o que lhe caía às mãos. Foi com ele que aprendi a amar os gibis, paixão que carrego até hoje.
Falando sobre eles, meu gene meio gente, meio traça, já ativa algum secreto botão nos meus sentidos, e eu posso sentir, como se lá estivesse, os aromas que exalavam dos livros, tanto no escritório de escuros e pesados móveis do pai de minha mãe, quanto da velha estante que ficava em um canto da padaria do pai do meu pai.
Assim como eu, eles pareciam ser seduzidos pelo papel, cada qual na sua medida, na sua forma, mas não duvido de que tudo fosse um mesmo amor, o amor pelas palavras que impressas no papel, propiciavam viagens que só alguns corações sabem fazer.
Tendo descendência de traça dos dois lados da família, é claro que a coisa toda, em mim, potencializou-se. Sou simplesmente louca por papel. Quando eu era criança, mesmo quando não sabia ler ou escrever, eu já me encantava com os cadernos e livros, em seus mais variados formatos. Gosto do cheiro de livro novo, de folhear rapidamente as páginas para delas extrair um aroma que não sei descrever, que não sou capaz de classificar, mas que me traz somente boas recordações. Ainda que possa parecer estranho, essencialmente a alguém tão alérgica como eu, até o cheiro do papel velho me encanta. Entre um milhão e meio de espirros, viajo no tempo, transposta para antigas bibliotecas, para o meio de segredos e histórias aprisionadas entre as linhas, como tesouros escondidos...
O meu encantamento pelo papel me leva ao amor pelas folhas e blocos em branco, nos quais derramo, mentalmente, assim que os vejo, “zilhões” de histórias e estórias. Aprecio os diferentes formatos, cores, texturas e, por um minuto, sinto-me tentada até a experimentar o gosto deles, em um devaneio típico de quem é mestiço de traça...
Sei que, infelizmente, o meu amor pelo papel não é ecologicamente correto. Sinto-me culpada pelas árvores que são derrubadas, por tudo que a natureza perde, mas tenho a esperança de que, um dia, o papel reciclado ganhe força e substitua os demais, ou ainda que somente madeira especificamente plantada para esse fim seja transformada em papel. De toda forma, traça que é traça aprecia a mudança do cardápio e, como tal, acho o papel reciclado simplesmente maravilhoso, detentor de uma beleza e charme únicos.
Sou compradora compulsiva de livros. Gosto de me cercada por eles. Gosto de olhar minhas estantes somente para saber que eles estão por ali, aguardando minha atenção, esperando-me para mais uma viagem, para destinos e aventuras que só posso antever em parte. Tenho dificuldades até de emprestar os meus livros e só o faço para aqueles que sei que os lerão e deles cuidarão com amor. Eu os envio ao mundo, ao deleito alheio, mas vivo deles aguardando o retorno.
Traça que é gente, não mastiga o papel, mas o devora, igualmente, com os olhos, saboreando-o no coração...
CINTHYA NUNES VIEIRA DA SILVA- Advogada, mestra em Direito, professora universitária e escritora - São Paulo
OS MEUS LINKS