Quem assistiu ao clássico do cinema soviético “O Couraçado Potemkin” pode fazer uma ideia do que foi a Revolta da Chibata e das repercussões que ela produziu no Brasil de 1910.
A revolta dos marinheiros do Potemkin, que mais tarde foi idealizada e instrumentalizada pela propaganda comunista, deu-se em 1905, na fase final do regime tzarista, 12 anos antes de os bolchevistas subirem ao poder na Rússia. Ela repercutiu em todo o mundo, onde se notava uma fermentação revolucionária que, em surdina, minava profundamente a ordem e a estabilidade aparentes da chamada “Belle Époque”.
No Brasil, no final de 1910, estava assumindo a Presidência da República o Marechal Hermes da Fonseca, filho de outro General Hermes (que comandava as tropas do Império na Bahia, quando do 15 de Novembro) e sobrinho de Deodoro da Fonseca. O Presidente Hermes teve um governo sui generis, inaugurando uma política nova em relação aos monarquistas que, até então, tinham estado alijados completamente da vida pública e colocados à margem da representação política, bordejando a ilegalidade. Hermes, julgando a República consolidada, deixou de praticar uma política de inspiração positivista e jacobina; atraiu para seu governo os apoios de líderes monarquistas que, mesmo fora da política, conservavam grande influência social e capacidade de trabalho; convidou, por exemplo, o Cons. João Alfredo Corrêa de Oliveira, antigo presidente do Conselho de Ministros do Império, para assumir a direção do Banco do Brasil; restituiu ao “Instituto Nacional de Educação Secundária” seu tradicional nome de Colégio Pedro II, que tinha sido mudado pelos republicanos da primeira hora; readmitiu antigos professores desse Colégio, concursados ainda no Império, que tinham sido despedidos sumariamente pelo Governo Provisório de 1889, como foi o caso de Carlos de Laet, o qual não apenas retomou seu cargo como professor, mas foi convidado pelo Presidente a assumir a direção do Colégio Pedro II. E, fato simbólico muito expressivo, Hermes deslocou-se até Petrópolis, para homenagear a memória de D. Pedro II, inaugurando uma estátua a ele dedicada.
Tudo isso mostrava o caráter conservador do novo governo, embalado numa situação econômica que parecia bastante promissora, com o café, o principal produto brasileiro, gozando de ótima cotação no mercado internacional. Os sucessos que nossa diplomacia tinha obtido nos anos anteriores, graças aos esforços inteligentes do Barão do Rio Branco, contribuíam poderosamente para dar, ao conjunto da vida pública brasileira, um ar de solidez, estabilidade e poderio invejáveis.
Foi nesse contexto que a ordem social foi profundamente abalada pela Revolta da Chibata.
Ainda não está inteiramente publicada a documentação a respeito, mas segundo parece, ela foi longamente tramada e preparada nas entranhas da nossa Armada, por meio de sociedades secretas existentes entre os marinheiros e praças. Era uma luta de caráter social, revestindo-se de um espírito de insubordinação e revolta contra a oficialidade. O pretexto cômodo para a revolta foi a exigência da abolição dos castigos corporais, que eram previstos e praticados pelas Forças Armadas de todo o mundo desde, pelo menos, os famosos regimentos do Conde de Lippe, no século XVIII.
Considerando nossa cultura atual e a mentalidade que hoje prevalece no Ocidente, a prática de castigos corporais parece-nos algo profundamente degradante, aviltante e atentatório da dignidade humana. Mas não era bem assim que a cultura da época a considerava, já que até em colégios da aristocracia britânica, como aquele em que estudou, por exemplo, o jovem Winston Churchill, surrar alunos era prática usual e até corriqueira. Fazia parte da pedagogia aceita e praticada no tempo. Tempora mutantur...
De qualquer forma, o uso e, sobretudo, o abuso da chibata deu pretexto cômodo para o movimento revolucionário, que eclodiu em vários navios da Armada ancorados na Baía de Guanabara, na noite de 22/11/1910, prolongando-se por 5 dias. O chefe aparente dos aproximadamente 2400 marinheiros revoltados foi João Cândido Felisberto, líder que, segundo consta, de longa data tramava o levante. A reação de alguns oficiais provocou suas mortes e deu, desde logo, ao movimento um caráter de violência que, ao que parece, não estava na intenção inicial dos seus organizadores. Também muitos marinheiros, de diversos navios de guerra, se recusaram a aderir ao movimento, que acabou reduzido a 5 ou 6 navios de guerra, que ameaçaram desde logo bombardear a capital, caso não fosse imediatamente abolida a chibata e não fossem anistiados todos os atos revoltosos.
Seguiram-se 5 dias de muita tensão e nervosismo. O Governo federal cedeu aos revoltosos, aceitando suas exigências, mas exigindo que fossem desarmados. Na confusão, houve os resistentes, o que deu pretexto cômodo, ao Governo, para revogar a anistia que tinha dado a contragosto e proceder com extremo rigor, até mesmo com brutalidade excessiva, em relação aos revoltosos. É muito difícil, à distância e sem conhecer toda a documentação da época, formular juízos de valor no caso. A tentação para carimbar os circunstantes como “mocinhos” ou “bandidos”, de acordo com nossas preferências e simpatias ideológicas, é muito grande. Mas, ensina-nos a História, julgamentos desses nem sempre são possíveis, e quando o são somente devem ser formulados, de acordo com a fórmula latina, “sine ira ac studeo” (sem rancor e com muito cuidado).
Houve um número elevado de revoltosos, talvez uns 200, mortos. Cerca de 2000 marinheiros foram expulsos da Marinha. João Cândido foi preso, como louco e indigente, mas mais tarde foi absolvido em corte marcial. Quase 100 anos depois, foi reintegrado com honras, post mortem, à Marinha.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
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