Falei, no último artigo, de uma modalidade muito comum nos antigos estudos genealógicos: a religiosa, aquela que focalizava a dimensão sagrada da transmissão da vida em determinadas estirpes, de geração em geração e através dos tempos.
Além dos registros genealógicos de cunho religioso, valorizavam-se no passado os de cunho nobiliárquico. Certas estirpes se destacavam por sua liderança, por sua maior capacidade de ação, por sua dedicação ao bem comum das sociedades grandes ou pequenas, não apenas se preocupando com o seu interesse individual ou familiar, mas também gerindo a sociedade e cuidando de prover às necessidades coletivas. Os membros dessas estirpes tendiam, muito explicável e naturalmente, a ser vistos com especial respeito pelos demais.
Já na Antiguidade, um tanto mesclado com o preponderante elemento religioso, constituíram-se aristocracias no verdadeiro sentido etimológico do termo (ou seja, os melhores ou os mais fortes exercendo o governo), as quais possuíam senso nobiliárquico, tendo noção clara de que constituíam uma elite, tinham conhecimento de seu passado e tinham esperança e disposição para um futuro na mesma orientação. Manda a verdade que se diga essas aristocracias antigas muito frequentemente degeneravam naquilo que é, segundo Aristóteles e São Tomás de Aquino, a corrupção da aristocracia, ou seja, a oligarquia.
Passando agora da Antiguidade para as origens da Idade Média, ou seja, após a verdadeira derrocada que representou, para o Império Romano do Ocidente, a avalanche das invasões bárbaras, à medida que os povos bárbaros se foram civilizando, que foram sendo expulsos os restos de paganismo, a tendência natural era para se constituírem e se consolidarem estirpes aristocráticas. É muito explicável que se procurasse registrar e conservar os feitos e os fastos dessas estirpes, de onde os linhagistas medievais que existiram em todos os países da Europa. Para falar em termos portugueses, recorde-se o famoso Livro Velho das Linhagens, também conhecido como Nobiliário do Conde D. Pedro.
A essas três modalidades clássicas de Genealogia, poderíamos acrescentar a do falso nobre. Ou seja, a da pessoa que se pretende nobre, se imagina nobre, e procura doidamente, numa ascendência irremediavelmente plebeia, algum antepassado nobre. E, como reza o velho ditado, "não há geração sem conde e ladrão", pode acabar encontrando algum nobre. Então começa o delírio: supervaloriza-o, põe-se a falar dele para toda a gente, começa a usar anel de nobreza sem ter a isso direito, e comete toda espécie de desatinos que a convertem verdadeiramente numa caricatura de nobre... e numa caricatura de verdadeiro genealogista.
Essa ridícula posição, naturalmente, sempre foi alvo fácil de sátiras de todo tipo. Seria um não mais acabar se fôssemos aqui transcrever algumas dessas sátiras, verdadeiramente espirituosas. Apenas à guisa de exemplo, lembrem-se a de Alexandre de Gusmão (Genealogia Geral para desvanecer a errada opinião dos Senhores Puritanos, Biblioteca Nacional, Lisboa, Códice 7663, pgs. 48, in "Brasil Genealógico", tomo 1, n° 1, 1960); a do Abade de Jazente, com seu famoso soneto satirizando os que supervalorizam linhagens fabulosas (apud Armando Barreiros Malheiro da Silva, A Genealogia em Portugal e o desafio do presente, em "Armas e Troféus", Lisboa, 1984, V série, tomo V, n°s 1-3); a de Frei Antonio de Santa Maria Jaboatão, que no final do seu Catálogo Genealógico das principais famílias da Bahia e Pernambuco, escreve em duas páginas a genealogia fabulosa da família Fialho (apud Luiz Marques Poliano, Heráldica, Edições GRD/Instituto Municipal de Arte e Cultura-Rioarte, São Paulo, 1986, pp. 330-333).
Por fim, outra modalidade que tinham os estudos genealógicos até 20 ou 30 anos atrás, era quando se destinavam a assegurar a transmissão de patrimônios pela via da sucessão hereditária. Em Portugal, por exemplo, nos séculos XVI a XVIII eram clássicas as querelas judiciárias prolongadíssimas (algumas se arrastando por diversas gerações) pela disputa de um vínculo, de um morgadio, de um senhorio qualquer que, por vontade do primitivo proprietário, se transmitia indivisível de geração em geração, pela linha da primogenitura, segundo certas regras gerais fixadas nas Ordenações do Reino, e segundo certas normas específicas estabelecidas pelo instituidor. Ao cabo de 100, 200 ou 300 anos, muitas vezes extinguia-se o ramo primogênito, e acontecia que se apresentavam vários pretendentes. Entravam então em cena genealogistas que, com ou sem razão, procuravam sustentar a precedência de umas linhas sobre outras, ou contestar a legitimidade de certas sucessões.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS, é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
OS MEUS LINKS