Os presépios são representações artísticas do cenário singelo e ao mesmo tempo rico em simbolismo da gruta de Belém, na qual nasceu Jesus Cristo, o Filho de Davi, o Esperado das Nações, Aquele que reconciliaria, por sua Paixão e Morte, a humanidade pecadora com o Criador.
Os Evangelhos são extremamente parcimoniosos no relato das circunstâncias concretas que cercaram o Natal. Dois Evangelistas, Marcos e João, silenciaram de todo. São Mateus, numa única frase, registrou que Jesus nasceu em Belém de Judá no tempo do rei Herodes, e logo a seguir passou ao relato da visita dos magos que vieram do Oriente, guiados pela estrela, para adorar o Menino (Mt, 2,1-12). São Lucas, o que mais extensamente tratou do acontecimento, limitou-se a dizer que José e Maria não encontraram alojamento na estalagem e por isso o Menino nasceu numa manjedoura, foi envolto em panos e ali recebeu a visita dos pastores (Lc 2,1-20).
Na tradição eclesiástica, em parte baseada em elementos confiáveis de alguns apócrifos muito antigos, firmou-se a ideia completa da gruta e dos animais que compuseram o quadro. Manjedoura, ou presépio, era o recipiente em que os animais comiam; essas mesmas palavras, por extensão, também podiam designar o estábulo ou aprisco, local em que os animais eram recolhidos à noite; tais abrigos, na região de Belém, geralmente eram localizados em grutas naturais. A presença do boi e do asno, reconhecendo e adorando o seu Senhor, foi textualmente registrada no apócrifo Evangelho do Pseudo Mateus (cap. XIX), que influenciou bastante a literatura e a arte medievais. Essa presença tem alguma base escriturística na aplicação, endossada pela autoridade de São Jerônimo (Epitaphium Sanctae Paulae, 10), de uma passagem do Profeta Isaías: “O boi conhece o seu dono e o jumento conhece o presépio do seu senhor, mas Israel não me conheceu e meu povo não teve inteligência” (Is 1,3).
A tradição, a piedade e a livre imaginação dos fiéis produziram, ao longo dos séculos, incontáveis representações de presépios, desde as mais simples e ingênuas, até as mais especiosas e requintadas. Os elementos essenciais do presépio são, evidentemente, Jesus, Maria e José. Elementos acessórios, mas quase indispensáveis, são o jumento e o boi. Quanto ao mais, a imaginação é livre. Não há limites para ela. A variedade é imensa e é inesgotável.
São Francisco de Assis, no início do século XIII, teve pela primeira vez a ideia de formar presépios vivos. Realizou seu intento na cidade italiana de Greccio. Coube à espiritualidade franciscana colocar os presépios tão no foco da devoção e da arte no mundo inteiro, mas já muito antes disso havia representações iconográficas e iluminuras natalinas. Algumas bem antigas foram preservadas até hoje, como por exemplo o afresco, provavelmente do século IV, que se vê numa das galerias do cemitério de São Sebastião da via Ápia; nele aparecem o boi e o jumento, ajoelhados diante do Menino-Deus envolto em panos.
Nenhum símbolo natalino é tão completo e tão universal quanto o presépio. A árvore de Natal, de origem germânica, o Papai Noel (modo artificial e pouco piedoso de laicizar a figura clássica do bispo São Nicolau), a estrela de Belém, os sinos - tudo isso exprime o Natal, sem dúvida, mas nenhum de modo tão perfeito quanto o presépio. Infelizmente, na vida moderna descaracterizou-se de todo o autêntico espírito de Natal e por isso até mesmo representações do presépio são prejudicadas por elementos que a distorcem.
Uma oportuna iniciativa está sendo tomada, em Santiago de Cacém, na província portuguesa do Alentejo, para restaurar a velha e venerável tradição dos presépios portugueses. Meu amigo Dr. José António Falcão - membro da Academia Portuguesa da História, autor de numerosos livros sobre museologia e História da Arte Portuguesa, alguns dos quais premiados pela UNESCO - e sua esposa, a conservadora-restauradora Sara Fonseca Falcão, articularam os esforços de um numeroso grupo de pessoas e estão lutando para restaurar no Alentejo a tradição do verdadeiro presépio português. No antigo quartel dos bombeiros de Santiago do Cacém, foi montado e estará aberto ao público neste mês de dezembro, um autêntico presépio lusitano. Durante o período, uma intensa atividade cultural será realizada, com conferências, concertos musicais e visitas guiadas. O objetivo é bem claro: preservar e revigorar a arte dos presépios, renovando-a criteriosamente, mas sem romper com o espírito tradicional.
Transcrevo da nota de imprensa que recebi as próprias palavras do Dr. José António Falcão, que além de idealizador da iniciativa é também dirigente da entidade que o está promovendo, o Centro UNESCO de Arquitetura e Arte (UCART): “O presépio português faz parte de uma rica tradição europeia, mas tem personalidade própria, em que marcam presença as cenografias baseadas em paisagens naturais, a multiplicação de cenas da vida rural e urbana, a alternância de escalas e o destaque conferido à Sagrada Família, que é o seu epicentro. Não se trata de manter a arte presepística como algo parado no tempo, há todo um espaço de inovação a valorizar, mas o que ocorre agora é uma amálgama de coisas sem sentido e sem gosto, que perturba inclusivamente a captação da mensagem de fundo do Presépio”.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
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