Desde que comecei a escrever sobre pessoas que em minha vida se destacaram por alguma característica única ou por algum especial momento compartilhado, passei a ter uns lampejos bem interessantes de memória, com o resgate de lembranças que estavam entre aquelas que não consigo acessar facilmente, no momento em que as desejo.
Sei que há pessoas que, embora sejam raríssimos os casos no mundo, que jamais se esquecem de cada minuto vivido. Ao contrário disso ser uma dádiva, ao que me parece, pelo que li, é quase um castigo, já que não se esquecer de nada não implica apenas lembrar do que se quer lembrar, mas nunca se esquecer daquilo que doeu, que magoou. Eu gostaria, apenas, de poder me lembrar de todas as pessoas interessantes que conheci e dos momentos felizes que vivi, eis que muitas lembranças, apenas minhas, não podem ser resgatadas por mais ninguém, mas a memória não funciona dessa forma.
Creio inclusive que seja por isso que resolvi escrever sobre algumas dessas pessoas, mas até pela impossibilidade de prosseguir nesse tema eternamente, optei por fazer um “pout porri”, um apanhado, como uma singela recordação que meu coração e minha memória fazem a pessoas que conheci nessas minhas décadas de vida. Faço isso sem nenhuma ordem de importância ou mesmo cronológica, exceto pela forma que começam a me “visitar” nesse momento.
Bate à porta, agora, Seu Sebastião. Vendedor de orquídeas, eu o conheci na cidade de Araras, apresentado por uma amiga em comum, Dona Therezinha, igualmente uma amante de flores. Comecei comprando uma e, quando vi, de tempos em tempos ele aparecia em casa com alguma flor especial, pela qual eu me derretia em segundos. Até parcelamento de flores eu fiz, rs... Estive na casa dele algumas vezes e nas visitas ao orquidário que ele mantinha, eu enchia meus olhos de cores e formas e ouvia atentamente sobre todas as dicas de cultivo. Lembro-me do sorriso tímido do Seu Sebastião e, quando ele se foi, senti a morte de um amigo. Perdi muitas das plantas que comprei dele, pois uma praga as atingiu e eu não tinha mais a quem perguntar como cuidar delas. Uma, entretanto, a Sebastiana, floriu esse ano e foi impossível deixar de me lembrar de um tempo agora já distante.
Deixo seu Sebastião a contemplar as flores de minha memória e vejo o Seu Euclides, também um ararense. Um dia eu recebi uma ligação e era o Seu Euclides, que editava o jornal da Matriz, convidando-me a colaborar. De início eu fiquei sem saber se poderia escrever sobre temas religiosos, mas aceitei o desafio e, mês a mês ele me passava uma incumbência especifica. Seguimos assim durante uns dois ou três anos. Passei a frequentar a casa dele e logo eu era conhecida não apenas da esposa dele, Dona Terezinha, como também do cachorro deles, um “salsicha” muito louco. Cerca de uns quarenta nos separavam cronologicamente, mas isso não foi obstáculo para uma amizade que surgiu através da literatura. Mudei-me para São Paulo mas continuei visitando a família, até que um dia eu soube que ele morrera. Continuei em contato com a viúva, por telefone e pessoalmente, até que um dia, liguei e ela não foi capaz de me reconhecer ou escutar. Triste, entendi que um ponto se colocara à revelia das vontades e da amizade...
Ainda de Araras, para ficar geograficamente no mesmo lugar, vejo uma mulher que se aproxima, com um sorriso no rosto, voltando das minhas memórias. Negra, gordinha, já passada, creio, dos sessenta anos, Dona Nega, como a chamávamos, fazia orações e benzia as pessoas. Muitas foram as vezes em que a fui visitar e lá fiquei, na varanda da casa dela, por horas, batendo papo sobre a vida e recebendo uma oração. Era reconfortante e ela parecia que adivinhava quando algo não estava bem, pois fazia a pergunta exata, assim como quem não quer nada ou pergunta sobre o tempo. A casa dela, humilde, sempre tinha aquele cheiro de café que marca inexplicável e maravilhosamente alguns lares. No pequeno quintal, havia plantas e flores e agora me recordo de um bulbo que ela me presenteou, dizendo que só nascia de vez em quando e que, se florescesse seria quase um milagre... Plantei o meu imediatamente e o namorei até que, uma única vez, ele floriu.
Com minha alma cheia de lembranças, faço um aceno aos meus amigos e despeço-me deles novamente, até que, algum outro dia, a memória os chame para perto. Seu Sebastião, Seu Euclides e Dona Nega são mais alguns entre meus tipos inesquecíveis...
CINTHYA NUNES VIEIRA DA SILVA - Advogada, mestra em Direito, professora universitária e escritora - São Paulo.
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