Em suas reminiscências não existem anos novos. Ela reconhecia as festividades de dezembro, com passagem para janeiro, nas comemorações dos outros. Enquanto menina, imaginava que seria bom se assim acontecesse em sua família. O desejo não era pela boneca que nunca veio. Ouvia, nas ruas, o som de risos felizes e, através das janelas, observava abraços apertados de quem se queria bem. A sua vontade maior fora sempre a de carinho grande na família, não de cuidados displicentes, apenas para manter a sobrevivência. Quem sabe foi isso que fez brotar nela o sentimento de inferioridade. O menosprezo por si mesma tirou-lhe de certa forma os sonhos e ela procurava, por onde caminhasse, passar despercebida. Notava-se isolada em seu mundo. Os pais não se amavam e muito menos se respeitavam. Relacionavam-se aos gritos. O pai retornava embriagado e a mãe, amargurada com as tarefas domésticas que realizava sem sabor algum, recebia-o com impropérios. Os irmãos, com medo das surras, pulavam a janela e desapareciam na noite. Apareciam sujos pela manhã, dependuravam nos ombros o bornal e iam à escola, com a cabeça preenchida por tumultos, sem espaço algum para aprender. A irmã mais velha reagia. Gritava como a mãe e com ela. Ameaçava bater no pai com o que tivesse nas mãos. Rangia os dentes de raiva. Ela era dócil e se julgava covarde. Encolhia-se em um canto qualquer, pedindo proteção a Deus.
Invejava o que considerava força na irmã, diante dos fracassos da família. Procurava imitá-la no que alcançava. Irritava a irmã a presença da menor, como espectro que a perseguia. Na fronteira entre a adolescência e a juventude, acompanhou em lamento, o caixão do pai e pouco tempo depois o da mãe. Havia, em um canto de seus sentimentos, um diminuto vaga-lume a lhe dizer que as coisas mudariam. Era através da luz desse pirilampo que ela enxergava, com seus olhos em pântano, uma casa pintada de branco, os batentes da janela azuis e a sala repleta de gente dela a se abraçar na passagem do ano. Se houvesse essa oportunidade, seriam apagados os anos anteriores.
Após enterrar o pai e a mãe, trilhou os passos da irmã na prostituição. Confundira as gargalhadas ébrias da irmã com felicidade. Imaginou que com o corpo exposto, nas boates e ruas, teria preenchido o vácuo da falta de carinho. A Beata Madre Teresa de Calcutá, com vivência profunda em meio aos marginalizados, afirmou: “A mais terrível pobreza é a solidão e o sentimento de não ser amado (....), sentimento de não ser reconhecido.”
Não se sabe exatamente o motivo e nem o autor, mas em uma das noites perdidas de seus dias, a labareda iluminou o cômodo no qual repousava e a atingiu. Incêndio criminoso de autor desconhecido.
Meses mais tarde, com a cópia do documento da alta médica na bolsa, dispersos os de sangue, sem alguém que se importasse com ela e com a pele marcada, estendeu de imediato as mãos com desgraças e pediu a primeira esmola de tantas outras.
Transcorreu uma década com lembranças e fatos ulteriores tristes, até que a idade avançou sem expectativa alguma. Inesperadamente, neste ano, se deparou com um homem sozinho, de cabelos brancos, sequelas de uma doença neurológica e em busca de um olhar que compreendesse o dele. No bolso, o comprovante do benefício de um salário mínimo. Decidiram juntar as dores e transformá-las em consolação. Ele pouco sabe dela: unicamente que o fogo queimou o seu corpo de alma lesionada. Ela não sabe quase nada dele: somente que a doença o limitou e , como ela, não possui alguém para chorar ou rir com ele. O benefício financeiro e o da convivência tornaram-se dos dois.
Moram em um cômodo de pensão, vão juntos à Unidade de Saúde e um espera pelo outro na sala de espera das consultas médicas. Ele observa se ela toma na hora certa o remédio e ela cuida da data dos exames dele.
Contaram-me, sorrindo, enquanto compravam roupas em um brechó, que decidiram, vestidos de amarelo, esperar 2010 de mãos entrelaçadas, em um banco na praça da Catedral, defronte aos anjos iluminados.
Eu, que os conheço – da história sei apenas a dela -, não posso dizer que não é história triste, mas admito que para eles é celebração da vitória para um ano novo.
Feliz Ano Novo, querida leitora, querido leitor, nos encontros inéditos e nos reencontros.
MARIA CRISTINA CASTILHO DA ANDRADE - É coordenadora diocesana da Pastoral da Mulher
É coordenadora diocesana da Pastoral da Mulher
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