Hoje deu-me para pensar nas minhas maleitas, mesmo sabendo que falar delas é de mau gosto, ainda se fosse para falar dos cães, contar as doenças da Arisca, a gata, ou a do cavalo, como os ingleses, ainda teria perdão, mas a Arisca está de perfeita saúde, apesar da sua provecta idade, assim como os cães e não tenho cavalos, nem sequer um burro como tinha
Os sarampos, as varicelas, as papeiras, as tosses convulsas ainda não tinham chegado. Nessas alturas a Mãe juntava os três filhos no mesmo quarto porque assim podia tratar de nós ao mesmo tempo. Mas não é disso que venho falar agora. O que eu queria contar foi o que me aconteceu há dias. Uma gata, que não era a Arisca, nada de calúnias, estando eu a puxar-lhe pelo rabo, a ensiná-la a dar-me a pata, como faço com os cães, deu-me uma enorme dentada numa mão. As minhas mãos ultimamente tem andado com azar, não há mal que não lhes aconteça, precisam de ir à bruxa.
Pois, dizia eu, a Celestina mordeu-me, não, não me arranhou não senhora. Mordeu-me como se fosse um cão, coisa que os meus nunca me fizeram porque esses aprenderam a educação que lhes dei. Tenho de confessar que ela tinha razão. Nunca lhe tinha feito malvadezes, mas naquele dia deu-me para isso, vá lá saber-se porquê. E a dentada fez um buraco na minha mão, jorrou o sangue e vieram as dores. Lá a levo ao hospital, antibiótico, analgésico etc. No dia seguinte começou a inchar, a inchar, que mais parecia uma bola. Lá vamos de novo para as urgências, espera de horas, uma saída de vez em quando, para a rua para o maldito cigarro, mais espera, outro médico, novo remédio e outra noite sem dormir. No dia seguinte além da bola, era o meu braço que tinha virado pomar. Debaixo da pele eles eram nêsperas e cerejas por todos os lados. E as dores … Apeteceu-me castigar a Celestina, mas ela já não se devia lembrar, pois aquela sem vergonha enroscava-se nos meus pés e saltava para o meu colo como se nada tivesse acontecido.
Tentei dominar a minha zanga, não pensar nas dores e fiquei-me por um ralhete dos grandes. E lá volto para o hospital, de braço ao peito. Nova espera de horas, nova escapadela para o cigarro até que finalmente chamam por mim. Entro no consultório e deparo com uma rapariga novíssima, certamente acabada de se formar, sem experiência, sem saber nada. Fiquei aterrada. Sou do tempo em que quase só os homens tiravam um curso superior. As raparigas ficavam-se pelas línguas, bolos e bordados. Ora se nem os médicos tinham acertado comigo, como iria ela resolver o meu problema ?
Voltei para casa desanimada e só por descargo de consciência comecei a tomar o remédio que me tinha receitado. E qual não é o meu espanto quando passado dias as dores desapareceram e o pomar começou a secar...
TEREZA DE MELLO - escritora, Lisboa.
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