Naquele tempo, o Zé do Telhado era apenas um rapazote alto e magricela, com muitas sardas e borbulhas na cara. Jogava ao pião e à bilharda, saltava ao eixo com os outros rapazes da sua idade. Saia sempre vencedor.
Tinha um jeito especial para fazer subir os papagaios e lá ia ele correndo pelos campos, seguido dum bando de garotos, encalorados com a correria.
-- Dá-lhe guita, dá-lhe guita --- gritavam todos excitadíssimos.
O papagaio subia, subia, arrastando consigo um enorme rabo de lacinhos de papel de todas as cores
O Zé do Telhado comandava:
-Agora vamos à quinta chamar pelo menino Francisco.
O “ menino Francisco”, era o pai do meu avô, e lá iam, seguidos pelo papagaio sempre no ar.
Um dia hei-de subir mais alto do que o papagaio !—costumava ele dizer.
Os outros riam-se --- Podia lá ser ! Só se fosse pássaro.
--- Hão-de ver ! Hão-de ver --- respondia confiante.
O Zé do Telhado foi crescendo e nunca deixou de ser amigo do menino Francisco. Iam ambos caçar e tinham longas conversas.
Depois o “menino Francisco” foi para Lisboa e por lá casou, mas, de tempos a tempos, voltava à quinta e o Zé do Telhado ia sempre visitá-lo e levar-lhe umas perdizes.
O Zé do Telhado começava a subir --- come ele dizia – a subir como um papagaio!
Era o terror das pessoas endinheiradas da região, e as suas façanhas, aumentadas de boca em boca, amedrontavam a todos. Somente os pobres não o temiam.
Os anos passavam e a fama das suas aventuras não diminuía, nem a amizade pelo seu amigo.
Um dia foi participar-lhe o casamento de uma filha e pedir-lhe uma jóia emprestada para ela levar à igreja. E, então, o meu bisavô foi buscar um colar de brilhantes, que tinha herdado dos pais.
Desde esse dia o Zé do Telhado não tornou a aparecer na quinta. Ninguém sabia dele. Dizia-se que andava a monte, fugido á justiça.
Todos na minha família perderam a esperança de tornar a ver o colar. Apenas o meu bisavô que confiava ainda no amigo tentava defende-lo e afirmava que um dia, quando menos esperassem, havia de voltar.
Mas os dias passavam. Os dias, os meses e os anos e, pouco a pouco, começou também a desconfiar do seu amigo. Quando o criticavam, já não o defendia, esboçava um gesto vago e começava a falar de outras coisas.
Certa noite, perto das onze horas, ouviu-se ao longe um galopar que deslizava pelas ruas da aldeia adormecida e, atravessando o pátio, parou junto da casa. O Zé do Telhado, a cavalo, acabava de chegar.
Os criados da quinta, gesticulando muito, acorreram de todos os lados e, fazendo grande alarido tentavam detê-lo.
O Zé do Telhado, olhando-os desdenhoso e aborrecido, insistia em ver o meu bisavô. E o meu bisavô, num instante, viu-se cercado pelas cunhadas e pela Mulher que o seguravam, tomadas de pânico.
-- Da outra vez foi o colar, agora o que será ? --- exclamavam elas no auge da indignação. Mas ele nem as ouviu e, irritado, desembaraçando-se das suas mãos, saiu da sala.
O Zé do Telhado esperava-o impaciente e, quando o viu aparecer, olhou-o de soslaio espiando os seus pensamentos. Todos aqueles anos sofrera temendo ter perdido a sua confiança e amizade.
O meu bisavô, impenetrável, e resolvido a não se deixar convencer dessa vez, ouvia o Zé do Telhado. E o Zé do Telhado contava: a filha no dia do casamento tinha perdido o brilhante do fecho e ele correra tudo até conseguir outro igual para o mandar encastoar.
O meu bisavô, pouco a pouco, mudava de expressão e por fim sorria divertido --- pois se o colar já não tinha esse brilhante quando lhe emprestara !
Então o Zé do Telhado, desatando o embrulho que trazia entregou o estojo: --- o brilhante que repusera seria uma lembrança para a Exma Senhora do menino Francisco.
E, logo saltando para o seu cavalo, partiu à desfilada caminho da serra.
O Zé do Telhado, olhava o céu e as estrelas e de novo se sentia a subir … A subir como um papagaio.
TEREZA DE MELLO - escritora, Lisboa
Do livro “O Mar do Búzio” 1967
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