São três histórias que se encontram. A primeira ouvi de minha mãe, a da Branca de Neve, escrita pelos irmãos Grimm, escritores e estudiosos alemães, que colocaram no papel esse e outros contos, que circulavam de boca em boca. Órfã de mãe, teve como madrasta uma mulher vaidosa e arrogante, que não podia suportar a ideia de que existisse alguém mais bela do que ela. Tomada pelo ódio e o ciúme, diante da beleza da menina ao crescer, pediu a um caçador que a levasse para a floresta e a matasse. Branca de Neve, contudo, protegida pelos sete anões, sobreviveu aos perigos da floresta, à faixa de seda apertada à cintura, bem como ao pente venenoso, com os quais sua madrasta pretendia eliminá-la. Da terceira tentativa, a maçã envenenada, foi salva pela interferência de um príncipe, que se apaixonou por ela.
De acordo com o psicólogo austríaco Bruno Bettelheim (1903-1990), em seu livro “A Psicanálise dos Contos de Fadas” – Editora Paz e Terra – 1985, a expulsão do pedaço da maçã envenenada, que entalara na garganta de Branca de Neve, desperta o renascimento. Depois do período transacional, entrará em uma experiência mais rica e feliz. Para ele, os contos antigos não remetem apenas para o encantamento, tratando também de problemas existenciais.
A segunda história é muito triste. Há acontecimentos com final feliz e tantos outros de tragédia. É a da miséria no Vale do Jequitinhonha do Estado de Minas Gerais, com pobreza e fome. Em 2009, a SBT Brasil, em série produzida pelo jornalista Sérgio Utsch, deu destaque para a “infância à venda” nessa região. Vidas desperdiçadas, desconsideradas, crianças se prostituindo, famílias inteiras na prostituição por sobrevivência. Crianças vendidas como mercadoria pelos próprios pais. Filhas do quadro de miserabilidade e de desestruturação dos laços familiares por ele gerado. Há dados que revelam que cidades com mais registros de exploração da infância são aquelas com alguns dos piores indicadores escolares.
A terceira história é a da menina em cujo sangue corre o Vale do Jequitinhonha. A mãe veio de lá mocinha. Perdeu definitivamente a adolescência quando foi entregue a um “tutor” pela família em situação de penúria. O “tutor” machucou os sonhos de sua alma no adolescer. Ao deixá-lo, anos depois, não trouxe os filhos que teve com ele. Viajou em fuga de seus desajustes e na esperança de apagar o passado. Não conseguiu. Para a desequilíbrio físico oferecem, mesmo que precário, tratamento, mas são poucos que se importam com os estragos emocionais. As vítimas procuram no álcool e em outras substâncias acalmar a dor que não cessa. Perdem a capacidade de tolerar um choro a mais no cotidiano. São pessoas que não foram respeitadas e respeito, do latim respectus, de reespicere, significa olhar. São pessoas que não foram olhadas e não conseguem olhar.
A mãe da menina, vinda da pobreza extrema em todos os aspectos, com o coração pisoteado, fez hematomas na filha bebê. Socorrida, a menina, do hospital, foi para um abrigo. Como a mãe não se arranjou por dentro para ir buscá-la, entregaram-na, com mais de três anos, a uma família substituta. A família já possuía um filhinho do coração. O casal – sem exigências para o amor, e isso agrada o coração de Deus - descobrira, em sua história, a vocação de cuidadores de gente miúda que precisa de colo, ternura, escola, paciência, para o agora e o futuro. A menina quis saber, assim que chegou à família e em diversos outros dias, se no seu aniversário haveria festa. E houve. Ela escolheu, para a decoração, a Branca de Neve. Na hora do “parabéns a você”, com crianças e adultos voltados para ela, amor materno e paterno a envolvê-la e o irmãozinho novo do lado, o brilho estelar de seus olhos e sorriso foi mais luminoso que a chama da vela. Cuspira a maçã envenenada. Percebera que estava protegida e que, no meio daquele povo, se tornara única. Sua vida provocava aplausos. Uma experiência rica e feliz, como a da Branca de Neve.
Posso estar enganada, mas vi, de seu sopro, ao apagar a vela, brotarem cristais de neve com claridade imensa.
Maria Cristina Castilho de Andrade
É educadora e coordenadora diocesana da Pastoral da Mulher/ Magdala, Jundiaí, Brasil
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