A ação mais efetiva no combate ao trabalho infantil deve ser baseada na educação. A própria Organização do Internacional do Trabalho reconhece que as crianças necessitam de uma formação de qualidade para adquirirem as qualificações necessárias ao possível êxito futuro no mercado de trabalho. No próximo sábado, celebra-se o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, uma excelente ocasião para refletirmos sobre essa importante questão em nosso país.
Desde 2002, a Organização Internacional do Trabalho escolheu 12 de junho como o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, pois nesta ocasião foi lido um relatório sobre o tema na Conferência do Trabalho que ocorre anualmente em Genebra (Suíça). No Brasil, o evento foi decretado como o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Infantil pela lei 11.542 de 2007, sancionada pelo presidente Lula. Nestas datas, no entanto, temos mais para refletir do que para comemorar.
Com efeito, o número de crianças que trabalham em nossa Nação é manifestamente alarmante e muitas vezes, são submetidas a jornadas superiores a oito horas diárias e algumas chegam a ganhar menos do que um salário mínimo, podendo ser vistas em carvoarias, mineradoras, na agricultura e até na coleta de lixo. A realidade mostra um acúmulo de outros fatos chocantes, entre os quais, a exploração de menores na prostituição e a existência de milhares deles, entre sete e quatorze anos, fora das escolas, apesar de todas as proibições legais.
O nosso país ratificou no ano 2000 a convenção 182 da OIT, que dispõe sobre as ações imediatas para eliminar as piores formas de trabalho infantil, tendo o Ministério do Trabalho criado a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, composta de representantes do governo, do Ministério Público do Trabalho, da sociedade civil, dos trabalhadores e dos empregadores, elaborando em 2003, o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador. Mesmo assim, a questão ainda não é prioritária e a sociedade não está conscientizada sobre os graves efeitos que podem dela advir.
Nessa trilha, invocamos Floriano Pesaro e Ricardo Montoro: “...Precisamos chegar a um consenso e agir com mais rigor. Criança não pode trabalhar em nenhuma hipótese. Essa é uma violação de direito incontestável. O trabalho infantil, em todas as suas formas, é proibido por lei. Está mais que provado que ele prejudica o desenvolvimento integral a criança....As perdas decorrentes da privação de um cotidiano de estudos, esportes, brincadeiras e afetos são severas. Além das seqüelas físicas, cognitivas e psíquicas, a criança que trabalha tem grande possibilidade de, alcançar a idade adulta, receber um salário cinco vezes menor do que o de quem começa a trabalhar aos 18 anos....O trabalho infantil está intimamente relacionado ao baixo rendimento escolar, à evasão e à repetência. Ele empobrece as pessoas e o país....”(Folha de São Paulo-12/06/2007- p.3 “Hoje e sempre: não ao trabalho infantil”).
Efetivamente, a ação mais efetiva no combate ao trabalho infantil deve ser focada na educação. A própria OIT reconhece que as crianças necessitam de uma formação de qualidade para adquirirem as qualificações necessárias a um possível êxito no mercado de trabalho. De acordo com o sociólogo Floriano Pesaro, “ investir na educação é também uma sábia decisão de caráter econômico. Eliminar o trabalho infantil e substituí-lo por uma educação universal oferece grandes benefícios – que, segundo recente estudo, superam os custos em uma relação superior a 6 para 1” (Folha de São Paulo- 12/06/2008- p. 3- “O trabalho infantil e o futuro do país”).
Não podemos perder de vista que o valor simbólico da educação fecunda o processo civilizatório, dos valores às leis, da política à vida e que ela se enquadra na Segunda Geração dos Direitos Humanos, àqueles que traduzem a relevância da igualdade e dizem respeito aos direitos sociais, culturais e econômicos. Um dos aspectos que agravam a situação é o da justiça social desconhecer a aspiração de todos à educação, reservando a cultura a uma classe privilegiada, fossilizando, assim, muitas forças humanas, mesmo porque, o seu fim é determinado pelo fim último do homem. Com efeito, através de uma formação adequada e crítica, visando sobretudo, a elevar o indivíduo, decorrerão inúmeros benefícios para toda humanidade, porque quando as pessoas se sentem partes integrantes de um todo, colaboram grandemente para o crescimento desse todo.
O número de crianças que trabalham no Brasil é manifestamente alarmante e muitas vezes, são submetidas a jornadas superiores a oito horas diárias e algumas chegam a ganhar menos do que um salário mínimo, podendo ser vistas em carvoarias, mineradoras, na agricultura e até na coleta de lixo.
JOÃO CARLOS JOSÉ MARTINELLI, advogado, jornalista, escritor e professor universitário
A Constituição da República de 5.10.1988 se apoia sobre um superprincípio: a dignidade da pessoa humana. Isso significa uma postura responsável de parte de todos os exercentes de poder estatal. Não é digna a situação dos moradores de rua, nem dos menores abandonados, nem dos excluídos. É obrigação do Poder Público traçar e implementar as políticas imprescindíveis à redução das desigualdades e à eliminação da pobreza. Se isso se faz, ao menos em algumas esferas, mediante distribuição de benesses, em outras impõe-se tratamento mais sério. Ou menos assistencialista.
O município é a entidade federativa encarregada de disciplinar a ocupação do solo urbano. Nada mais íntimo à garantia de uma subsistência digna do que a moradia compatível com as mínimas exigências do bem viver. E isso não existe nas favelas. A favela é a antítese da residência digna. Construções toscas, edificadas com inadequado material – lata, papelão, restos de demolições – e não propicia higidez de convívio para os seus moradores. Ainda quando a precariedade seja substituída por construções de alvenaria, não se atende ao exigível pelo urbanismo: recuos, reserva de espaço para a circulação, áreas verdes e institucionais.
A recolha do esgotamento é inexistente ou deficitária. O fornecimento de energia elétrica ou água não supre o desarranjo físico. E isso vai se refletir no surgimento dos problemas conhecidos. A inexistência de equipamentos coletivos impede o crescimento saudável da infância ali residente. Os meandros e passagens espremidas entre o adensamento das edificações facilitam o esconderijo de infratores. Sabe-se que em alguns núcleos favelados a polícia não consegue entrar. Mas também ali não tem acesso a ambulância, o socorro médico, o táxi ou qualquer outro veículo, inclusive o transporte escolar.
Não se pode transigir com essa situação. É um erro tentar corrigir o que nasceu errado e não tem conserto. A coragem imprescindível é a de erradicar a favela. Difícil? É óbvio que a empreitada parece utópica. Mas não é impossível. Cidades que ainda não foram tomadas por uma imensidão de favelas têm condições de enfrentamento da questão. Basta vontade política. Ou é preferível perder vidas como ocorreu neste outono, na região metropolitana do Rio de Janeiro?
José Renato Nalini é Desembargador da Câmara Especial do Meio Ambiente do Tribunal de Justiça de São Paulo e autor de “Ética Ambiental”, editora Millennium. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.
Desde que me lembro por gente, mais se descobriu outros males do que se colocou um fim neles. Quando eu era criança lembro-me de que os adultos, essencialmente os mais velhos, falavam que não se podia comer manga e leite juntos, que não podia comer e ir para piscina, que não podia “vesgar” os olhos e olhar no espelho, essencialmente se um galo cantasse nessa hora, bem como lavar o cabelo quando se estivesse menstruada.
Ainda que as crianças não acreditassem muito nessas histórias, sempre tinha quem comia manga verde e tomava leite só para ver se passava mal e não precisava ir para escola. Eu, por precaução, nunca misturei. Também por cautela, só ia para piscina com a barriga quase roncando, porque tinha medo de congestão, do mesmo jeito que morria de medo de brincar de “vesgar” os olhos e algum dos benditos galos que tínhamos no quintal, cismasse de cantar na mesma hora. Sem contar que, sempre que eu via uma menina com cabelos sujos, já pensava que a coitada estava menstruada e impossibilitada de lavar.
Ainda bem que o tempo demonstrou que tudo isso, ou a maior parte, era uma grande bobagem, de forma que escapei de sair por aí com os cabelos sebosos e, talvez graças a nenhum galo se empolgar, também não fiquei com problemas de vista. Seja como for, pelo que me lembre, não havia, como hoje há, tanta coisa que fizesse mal ou que engordasse.
Atualmente, além das vacinas para as gripes suínas da vida, ainda temos que ter cuidado com o sal, com o açúcar, com o café, com o estresse, com o assédio sexual, com o moral, com o bulling, com as calorias e com a posição dos móveis dentro da casa. Em suma, para mim, é muita coisa para pensar em uma só vida...
A cada semana, sem muito exagero, surgem novos estudos, com os mais variados e loucos resultados. De um dia para o outro, o cafezinho que representava um prazer, pode matar ou deixar a pessoa esquizofrênica. Comer comida muita salgada mata e muito doce também. Melhor comer tudo insosso. Se o meu sofá estiver virado para o lado errado da rosa dos ventos, sem que eu saiba disso, posso perder todas as minhas economias, inclusive aquelas que nem ganhei ainda.
A escola, que antes era um lugar onde, supostamente, as crianças estavam em segurança, agora é um lugar de risco. Lá se pode morrer metralhado por algum aluno que não concordou com as notas datas pelo professor ou que se inspirou na cena de algum filme de terror. Também se pode morrer comendo comida estragada, já que parte das verbas das merendas vem sendo desviada para finalidades menos nobres, bem como se pode ser vítima de bulling, um negócio que até pouco tempo não se sabia o que era, mas que, paradoxalmente já praticava, mas que não matava ninguém, já que era praticado de forma menos violenta ou cruel.
Antes não havia internet, mas também não se tinha o medo dos vírus, do spam, da propaganda enganosa, de montagem de fotos e da exposição da vida privada em sites que qualquer um pode assinar. As pessoas vivem estressadas, entupindo-se de remédios para tudo, para engordar, para emagrecer, para ficar bem, para não ficar mal, para dormir, para acordar. Depois, loucas, saem buzinando por aí, como se estivessem permanentemente sem freios...
Sei que, graças à evolução tecnológica e científica, hoje se vive mais e a comunicação é quase universal. Só tenho minhas dúvidas se vivemos melhor. O medo do que se come, do que se respira, bebe, fala, ouve ou pensa é quase uma constante. Quero ver o futuro, seja ele como for e busco fazer minha parte para que seja melhor, mas confesso que hora ou outra a nostalgia me ataca e fico com saudades da ignorância, do tempo da grande ameaça que era tomar manga com leite...
CINTHYA NUNES VIEIRA DA SILVA- Advogada, mestra em Direito, professora universitária e escritora - São Paulo
Um dia, diante de um pinheiro todo vergado pelo tempo, o sábio da aldeia ofereceu a sua própria casa para aquele discípulo que conseguisse vê-lo na posição correta. Todos se aproximaram e ficaram pensando na possibilidade de ganhar a propriedade e prestígio; mas como seria enxergar o pinheiro na posição correta?
O mesmo era tão torto que a pessoa candidata ao prêmio teria que ser meio contorcionista. Portanto, ninguém ganhou o prêmio e o velho sábio explicou ao povo ansioso que ver aquele pinheiro em sua posição correta era vê-lo como uma árvore torta. E completou:
– Nós temos essa mania de querer consertar as coisas, as pessoas, e tudo mais de acordo com a nossa visão pessoal. Quando olhamos para uma árvore torta é extremamente importante enxergá-la torta, sem querer endireitá-la, pois é assim que ela é. Se tentarmos endireitá-la, ela vai rachar e morrer. Também nos nossos relacionamentos, é comum um criar no outro expectativas próprias, esperar que o outro faça aquilo que ele sonha e não o que pode lhe oferecer.
Pois é, concordo que sofremos antecipadamente por criarmos expectativas que não estão ao alcance dos outros, porque temos essa visão de consertar o que achamos errado. Se tentássemos enxergar as coisas como realmente são, muito sofrimento seria poupado. Os pais também sofreriam menos com os filhos, pois, conhecendo-os, não colocariam expectativas falsas nas suas vidas, gerando crianças frustradas, rebeldes e inseguras.
Pelo menos tente ver as pessoas como são. Pare de imaginar como deveriam ser e não insista em consertá-las da maneira que somente você acha bonito. Crie menos dificuldades no relacionamento; se vemos as coisas como são, muitos problemas deixam de existir, sem brigas, sem ressentimentos.
Olhe para você mesmo com ‘olhos otimistas’ e enxergue as coisas que ainda deve fazer e não fez. Pode ser que a sua árvore seja torta aos olhos de outras pessoas, mas pode vir a ser a mais frutífera, a mais bonita, a mais perfumada da região.
E quando faltam opções para engrandecer a alma, duas coisas podem ser buscadas: criatividade e evangelização. Ambas podem ser praticadas numa única ação: criatividade na evangelização. Esta opção sempre existirá para qualquer pessoa temente a Deus, e os resultados são maravilhosos, tanto pessoais quanto comunitário.
Todos nós somos criativos em maior ou menor grau, basta sabermos usar a criatividade para alcançarmos, com simplicidade, alguns resultados desejados. No trabalho, por exemplo, se o patrão nos cobra um serviço urgente e o tempo não é suficiente para realizá-lo adequadamente, a criatividade pode ser praticada para o sucesso da missão.
Nos estudos, muitos alunos conseguem bons resultados por serem criativos no aprendizado: inventam artifícios diversos para decorar fórmulas; destacam aspectos importantes da matéria para resumir; fazem questionários, simulando a própria prova etc.
Também podemos usar do nosso poder criativo e ajudar muitos irmãos a seguir pelos caminhos da fé. Um simples objeto religioso à mostra no nosso corpo serve como instrumento de evangelização. Pode ser uma camiseta, um terço, uma corrente, um broche, enfim, um símbolo que destaque a fé e dê abertura para outras pessoas se sentirem atraídas por aquela mensagem.
Colocar um adesivo plástico no vidro do carro é um outro recurso válido e barato para evangelizar. Têm imagens de Jesus e de Maria belíssimas que chamam a atenção! Basta ser criativo: escolhendo uma bela estampa e a divulgando em local de destaque.
Além desses meios, eu procuro evangelizar com testemunhos de fatos vividos em família ou na comunidade. Por serem casos reais que provam o amor de Jesus e de Nossa Senhora por nós, geralmente tocam profundamente nas pessoas. Assim, fica mais fácil amolecer certos corações e conduzi-los para junto de Deus.
Na evangelização, o importante é nunca faltar humildade no relacionamento com os irmãos desgarrados, e sempre rezar com confiança – pedindo ao Espírito Santo que nos ilumine para resgatar almas perdidas.
Mas, falando de criatividade, não dá para esgotar o assunto. Cada um pode e deve colocar em prática o dom criativo que Deus lhe deu e ajudar a chamar pessoas para o trabalho em comunidade. Se nos unirmos contra as ciladas do demônio, nos afastaremos do pecado e alcançaremos mais graças do Céu.
Ao ressuscitar, Jesus nos mostrou que ‘quem ri por último ri melhor’. Portanto, a cada alma que ajudarmos a chegar ao Paraíso, cumpriremos parte da nossa missão e provocaremos boas gargalhadas dos anjos da guarda.
Então, se você ainda não procurou ajudar a Deus no processo de pescar e salvar almas, tenha coragem, seja criativo e tente. Logo verá que valeu a pena!
PAULO ROBERTO LABEGALINI -- Escritor católico, Professor Doutor da Universidade Federal de Itajubá-MG. Pró-reitor de Cultura e Extensão Universitária da UNIFEI
Estive, na semana passada, no Centro das Artes, para ver Inos Corradin em obras e fotos. O Inos e eu temos uma amizade bonita, sem cobranças, com carinho de alma. Serei sempre grata a ele, dentre outras coisas, pela capa de meu primeiro livro, cujo quadro enobrece a parede de casa. Enquanto percorria a exposição, que também celebra os 80 anos do artista, veio-me a saudade de algumas pessoas queridas, que ali estavam perpetuadas, e com quem me encontro, atualmente, poucas vezes, como Da. Fernanda Milani. O Inos, Da. Fernanda, João Borin e Renato Bezzan, no início da Casa da Cultura, na década de oitenta, partilharam comigo experiências extraordinárias de Artes Plásticas, por eles organizadas com assessoria de Sandra Cárnio. E a saudade, igualmente, do José Roque Cerezer, escultor com muitos aplausos, amigo fiel, de ternura e respeito. Faltando menos de um dia para ele partir, pelas palavras de Dom Joaquim Justino Carreira, e a bênção, reencontrou-se com a coragem e a misericórdia de Deus, que o acompanhou, mesmo que ele não percebesse, através dos caminhos sombrios ou mais claros.
Além das fotos, encontrei-me em plenitude com Inos na escultura Marinheirinho. A alma de Inos no Marinheiro. Suas tintas, pincéis, telas, imaginação, conhecimentos técnicos, sua bagagem de vida no barquinho de papel, ao lado do Marinheirinho. Que delicadeza, meiguice, simplicidade, perfeição e força.
O barquinho segue pela enxurrada das sarjetas, pelos córregos, pelos rios e chega ao mar. O barquinho mantém a mesma dignidade nas sarjetas e no oceano. Ah, o oceano do Inos! Tem a lua, uma ilha, aves, pensadores. O Marinheirinho não se perde de seu barco, na sarjeta e no oceano. E o barco, na correnteza da sensibilidade do Inos, navega pelo coração das pessoas. O barco segue Inos e ele o conduz sem remos, pelo fio invisível de sua alma grande. Guiam-se assim na maré alta, na maré baixa, nas ondas brancas e cinzas, nas tempestades e calmarias em direção ao alaranjado do horizonte.
Inos chega aos quadros e às esculturas, que mais tarde se vão para outros portos no barquinho de papel. O barquinho vai e volta com a plenitude de Inos, sem reviravoltas e mudanças. O barquinho, com Inos e seu fio de alma grande, passa pelo casal de enamorados e deles carrega amor inocente, amor em essência, amor puro. Passa pelo malabarista e transporta habilidades e tons de alegria circense.
Quando o barquinho de papel retorna de suas viagens, o Inos desembarca sem ter perdido, apesar do que se foi, o seu universo e a poesia. E seguimos num detalhe, numa imagem, numa cor com Inos que tem olhar que filtra a escuridão e desperta encantos.
Saúde, Inos! Deus o proteja sempre! São Francisco o conserve com a simplicidade dos sábios!
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE - É coordenadora diocesana da Pastoral da Mulher e autora de “Nos Varais do Mundo/ Submundo” –Edições Loyola
— Oi, Bino, onde você está indo?
— Vou ver a peça O Homem Inesperado, com os atores Paulo Goulart e a Nicete Bruno...
— Bacana! Que horas começa o espetáculo?
— Às 17h00, no Politeama...
— Mas são 15h00 ainda. Você vai abrir o teatro?
— Não, meu amigo. Há necessidade de ficar na fila até às 16h00, quando a bilheteria abre e começa a distribuição das entradas.
— Estranho isso. Quer dizer que você vai às 15h00 retirar ingressos para um espetáculo que começa às 17h00... se a peça demorar uma hora você sairá do teatro às 18h00...
— O que tem isso?
— Nada. Só estava me lembrando que, para assistir a uma peça com duração de uma hora, você perderá praticamente toda a tarde de domingo.
— É verdade. E se a peça demorar mais que uma hora?
— Nesse caso perderá toda a tarde e parte da noite posto que, com a aproximação do inverno, escurece mais cedo.
— É verdade. Bom, vou indo, a gente se vê à noite. Até.
— Até.
(Cinco horas e trinta minutos depois) — E aí, Bino? Gostou da peça?
— Da peça sim, Adorei. Os dois atores são excepcionais...
— Ué, o que houve? Você parece chateado.
— E tô mesmo. Imagine que a fila para pegar os ingressos para a entrada tinha cento e trinta metros de comprimento. Foi horrível. Nós todos expostos ao sol esperando a bilheteria abrir – às 16h00 – para pegar os ingressos. Com este em mãos, às 17H00, fomos para a outra fila, aquela, enorme, para entrar. O pessoal que não estava nessa fila ficava aglomerado, de pé, frente ao teatro...
— No sol, também?
— Claro. Os seguranças fizeram essa fila enorme se transformar em fila indiana...
— Indiana? Um atrás do outro?
— Sim.
— Pra quê?
— Para que o pessoal que estava parado na frente do teatro não entrasse. Só os que estavam na fila entravam. Com isso, a demora se prolongou e só conseguimos entrar às 17h35. A peça começou às 17h45
— Os idosos, grávidas, deficientes, entravam?
— De jeito nenhum. Eu mesmo, que tenho 72 anos, nem pedindo ao diretor do Politeama, tive permissão para entrar. Vi muitas senhoras cobrindo o rosto com as bolsas, por causa do sol. Não havia prioridade para ninguém.
— Mas o Estatuto do Idoso...
— Não fale bobagem. O meu medo era uma chuva inesperada...
— Por quê?
— Já pensou todo aquele pessoal ali e um temporal violento caindo sem aviso prévio?
— Seria uma catástrofe, não?
Jundiaí, 23/05/2010
ALBINO JÚNIOR - Jundiaí (SP), Brasil
Sempre fui a favor de que os vicentinos usem jalecos nos nossos trabalhos de assistência aos necessitados, uma vez que não aparecemos nunca na mídia. Não falo isto para fazer uma propaganda do nosso apostolado, pois sei que devemos ser o mais anônimo possível, mas para que, também, a SSVP se torne mais reconhecida como uma entidade que ajuda a quem precisa, seja nas ocasiões de tragédias ambientais, seja no nosso dia a dia de visita aos pobres.
Não me lembro de ter visto o nome da SSVP mencionado em nenhuma reportagem das entidades que ajudaram nas tragédias que ultimamente têm abalado o mundo. Nos deslizamentos de terras, nas enchentes, n as secas, tenho a certeza de que muitos vicentinos lá estavam para ajudar.
Mas hoje fiquei um pouco preocupado.
Vi uma notícia na TV de que em uma cidade do norte de Minas, um homem estuprou duas crianças em uma creche.
A notícia dada pela reportagem não dá muitos detalhes, mas uma coisa chamou a minha atenção: o homem que foi preso vestia uma camiseta de uma Conferência, se não me engano, São Cristovão. Embora não se mencione o nome da SSVP, é um caso a se pensar.
Não sei se o homem que fez tal ação é um vicentino (que creio não seja) ou se simplesmente usava uma camiseta doada por algum confrade ou consócia. De qualquer modo foi uma pena, muito mais pelo que aconteceu às crianças, mas também por ter aparecido o nome de uma conferência.
É um risco que devemos correr ou não? Levando em consideração que nos tantos e tantos anos que milito na SSVP foi a primeira vez que vi uma situação dessas, acho que o que devemos é não deixar que ela fique sem ser esclarecida.
Não sei a qual Conselho Metropolitano a cidade onde o fato ocorreu pertence, mas seria bom que tudo fosse feito para esclarecer o que se passou. Num tempo onde muitas denúncias sobre pedofilia estão acontecendo, a SSVP deve tomar todos os cuidados para que não seja envolvida em casos semelhantes. Nós temos muitas creches sob os nossos cuidados. Muita gente nem sabe o trabalho que fazemos, mas quando acontece um caso assim, é fácil a generalização, como aconteceu com a Igreja Católica, onde por causa de uma meia dúzia de maus padres e bispos a imprensa, principalmente a contrária à nossa religião, divulgou como se os milhares de padres e centenas de bispos sérios fossem todos iguais. Aproveitaram um fato verdadeiro, mas de um pequeno número, para tentar enxovalhar toda a Igreja.
É um risco que precisamos correr, pois não vamos deixar de administrar as creches por causa do fato narrado, mas cuidado e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.
Pode ser que a notícia passe meio despercebida no resto do Brasil, mas na região onde aconteceu certamente isto não acontecerá.
Tomara que tudo seja esclarecido, mas o fato pode servir de alerta para todos nós. Se notarmos o indício de um comportamento estranho em uma de nossas creches, é bom averiguar o quanto antes para que não aconteça o pior, para as crianças e para a Sociedade São Vicente de Paulo.
ALUIZIO DA MATA - Vicentino, Sete Lagoas, Brasil
Dois irmãos, de nome José e António, que viviam nas abas de Viseu, cansados de labutar no campo, que mal dava para o sustento, assentaram buscar trabalho na Capital.
Um, procurou emprego no comércio; outro, negociou por conta próprio, como vendedor ambulante.
Decorrido meses, o José, conheceu uma jovem e casou-se. Adquiriu casa nos arredores e durante trinta anos tem que pagar ao banco, que lhe emprestara o dinheiro, capital, mais juros.
António também se matrimoniou, mas pensando que seria asneira comprar habitação, ergue num baldio tosca casa rasa, apropriando-se de pequeno terreno, onde colhe os mimos.
Durante trinta anos a fio, José terá que retirar, do magro salário, a mensalidade, sempre temeroso de perder a casa, por falta de pagamento. No correr dos anos, ajuntou à despesa: o imposto camarário, seguros e obras de beneficiação.
Como o salário é pequeno, trabalha sem cessar, aforrando quanto pode. Férias nunca as teve e divertimento mal conhece.
Ao invés, o irmão, liberto de despesas e impostos, possuí automóvel topo de gama, e no Verão tira um mês para estanciar no Algarve ou nas costas soalheiras do mediterrânico espanhol.
Nada tem de seu, porque nunca aforrou, desse jeito obtém muitos subsídios. Pelo contrário, o irmão, considerado da classe média e proprietário, não recebe benesses estatais, e está impedido de auferir auxílio de entidades particulares, ainda que de portas a dentro hajam grandes precisões.
Um dia aparece, no barraco do António, uma senhora, declarando que estava ilegal e que a moradia que levantara de blocos teria de ser imediatamente arrasada.
- Mas nós não temos para onde ir?! – Brada, juntamente com a mulher, - empregada fabril, - enquanto dois envergonhados garotos espreitam atrás da porta.
São informados que seriam deslocados para nova casa e pagariam de harmonia com o rendimento familiar.
Aceitaram, contrariados e foram viver para bairro camarário, a dois passos do irmão José., num T3 acabado de construir.
Moral da história:
Será que compensa amealhar? Será que vale a pena não gozar férias e passar décadas de privações e canseiras?!
Oh formiga de La Fontaine!, se vivesses neste século certamente cantarias todo o Verão! António habita num cómodo T3 e paga renda inferior ao que o irmão tem que entregar mensalmente pelo T2 usado!!!...
Dois irmãos…duas vidas. Quem a sabe viver?
HUMBERTO PINHO DA SILVA - Porto, Portugal
Uma das mais importantes solenidades do Ano Litúrgico é a festa da Ascensão de Jesus aos céus, quarenta dias após os acontecimentos de sua Paixão (Lc 24,46-53). Ele se separa novamente de seus discípulos, deixando lições preciosas. Ele retorna para junto do Pai para ficar à espera dos que Ele redimira, mas, maravilhosamente, fica com seus seguidores aqui na terra no Sacrário das Igrejas. Ele cumpriria sua promessa: “Eu estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos” (Mt 28,20). Há, deste modo, um misto de nostalgia e alegria no dia da Ascensão, pois Cristo deixa esta terra, mas permanece contemporâneo de todas as gerações cristãs através da divina Eucaristia. No céu é o Sacerdote poderoso que intercede continuamente pelos homens, Ele cuja prece é a alma de todas as orações. Na terra é o companheiro de viagem. Uma e outra realidade são vividas intensamente através da fé e levam a um júbilo imenso. Jesus vai-se embora, mas não deixa um vazio no coração de seus epígonos. Instala uma nova situação, pois na aventura por este exílio Ele continuaria junto dos seus aqui na terra e lá no céu! Além do mais Ele da Casa do Pai enviaria o Espírito Santo, a força do alto e, deste modo, sua Ascensão é um convite à preparação para outra grandiosa festa que se aproxima: Pentecostes. Por tudo isto o cristão é alguém que vive numa radiosa e contínua esperança, como está na oração deste dia glorioso. Com a Ascensão um horizonte imenso se abre. Jesus se oculta sob as espécies sacramentais e aumenta a expectativa de seu retorno visível glorioso no dia da Parusia pelos anjos anunciada e registrada nos Atos dos Apóstolos: “Esse Jesus que, separando-se de vós, foi arrebatado ao céu, virá do mesmo modo que o vistes ir para o céu” (Atos 1,11)! Afiançara, portanto os mensageiros divinos: “Ele voltará”, como está, aliás, predito na descrição do juízo final: “Quando pois vier o Filho do Homem na sua majestade e todos os anjos com ele, então se sentará sobre o trono de sua majestade. Serão todas as gentes congregadas diante dele” (Mt 25,31-32). Até lá, Jesus chama a todos para justificá-los e santificá-los mais e mais afim de um dia os glorificar na sua glória. É preciso mentalizar esta verdade extraordinária. Cumpre marchar com Ele que nos convida a seguí-lo. Cabe ao cristão levar ao mundo uma porção do céu onde está o Mestre. O pensamento do céu, porém, não é alienante é preciso respeito total pelo momento presente. O anelo das realidades celestes não torna ninguém negligente de seu trabalho, do empenho pela construção de um mundo melhor. É necessário que se fuja de todas as doutrinas esotéricas que pululam por toda parte e que contaminam a pureza da fé cristã. Como os apóstolos todo batizado é enviado ao mundo para testemunhar a verdadeira doutrina sobre a vida além túmulo, cônscio cada um de sua responsabilidade. A vida eterna que a Ascensão de Jesus nos recorda foi dada embrionariamente no dia do batismo. Ela deve crescer e se desenvolver no cristão durante toda sua vida e se irradiar por toda parte numa existência repleta da verdadeira esperança. Após a Ascensão, Cristo não mais visível aos olhos humanos, mas o mundo deve, entretanto, poder contemplá-lo através de seu seguidor, entendendo sua mensagem pelas suas palavras e suas vidas. Mais do que nunca a Igreja tem necessidade da incorporação de todo batizado no Senhor que está à direita do Pai. Será por Jesus que a existência de cada um será uma ascensão contínua para o céu onde ele está a sua espera. Lembremo-nos que Santo Estevão ao morrer afirmou: “Eu vejo os céus abertos e o Filho do homem de pé à direita de Deus” (Atos 7, 56). O detalhe é importante Jesus de pé, não assentado porque Ele continua sua missão salvífica e só se assentará, definitivamente, quando todos os seus estiverem no céu para glorificar a Trindade Santa por toda a eternidade. Está de pé para sustentar seu discípulo na pugna contra o mal. Cumpre, portanto, seguir o Senhor pelo coração lá onde está intercedendo por nós. Fujamos dos desejos terrestres e que nada nesta terra possa nos seduzir. Empreguemos o tempo presente para praticar o bem, cultivar as virtudes para não perdermos o lugar que nos está reservado lá no céu. Vivamos, então, em função da Eucaristia, Jesus presente entre nós, como pão da vida eterna!
Côn. JOSÉ GERALDO VIDIGAL DE CARVALHO - Professor do Seminário de Mariana, durante 40 anos - Brasil
Esta é a narrativa de um homem que estava infeliz com tudo o que lhe acontecia:
“Certo dia, decidi dar-me por vencido. Renunciei ao meu trabalho, às minhas relações, à minha espiritualidade, até à minha vida. Dirigi-me ao bosque para ter uma última conversa com Deus:
– Senhor, poderias dar-me uma boa razão para eu não entregar os pontos?
A resposta me surpreendeu:
– Olha ao redor. Estás vendo a samambaia e o bambu? Pois bem, quando os semeei cuidei deles muito bem, não lhes deixei faltar luz e água. A samambaia cresceu rapidamente, seu verde brilhante cobria o solo; porém, da semente do bambu nada saía. E, apesar disso, eu não desisti do bambu. No segundo ano, a samambaia cresceu ainda mais brilhante e viçosa; da semente do bambu, nada apareceu. Mas não desisti do triste bambu. No terceiro ano, no quarto, a mesma coisa; mas no quinto ano, um pequeno broto saiu da terra. Aparentemente, em comparação com a samambaia, era muito pequeno, até insignificante. Depois, o bambu cresceu mais de 20 metros.
Fui ouvindo e imaginando o final da história. E Deus continuou:
– O bambu ficou cinco anos afundando raízes, que o tornaram forte e lhe deram o necessário para sobreviver. A nenhuma de minhas criaturas eu faria um desafio que não pudessem superar.
E parecendo olhar bem no meu íntimo, concluiu:
– Sabes que durante todo esse tempo em que vens lutando estavas criando raízes? Eu jamais desisti do bambu e nunca desistirei de ti. Peço que não te compares com os outros. O bambu foi criado com uma finalidade diferente da samambaia, mas ambos eram necessários para fazer do bosque um lugar bonito. Teu tempo vai chegar. Crescerás muito!
– Quanto tenho que crescer? – perguntei.
– Tão alto quanto o bambu – foi a última resposta.”
Pode deduzir, leitor, que Deus quis dizer: ‘Tão alto quanto quiser que eu te ajude!’ Assim, espero que estas palavras também possam ajudá-lo a entender que Jesus nunca desistirá de você. Nunca se arrependa de um dia vivido – os bons trouxeram felicidade, os maus deram-lhe experiência. Ambos são essenciais para a vida. A felicidade adiciona doçura e os problemas nos mantêm fortes. O sucesso alimenta o ego, mas só Deus nos mantém caminhando rumo ao Céu.
Para viver melhor, o importante é sabermos aproveitar tudo o que encontramos pela frente. Imagine alguma pedra que surge no caminho... Isto já aconteceu com muitas outras pessoas...
O distraído nela tropeçou, o bruto a usou como projétil, o empreendedor a empregou para construir, o camponês fez dela um assento... Para meninos, foi brinquedo; Carlos Drummond de Andrade a poetizou; com ela, David matou Golias e Michelangelo extraiu-lhe a mais bela escultura. Em todos esses casos, a diferença não esteve na pedra, mas no homem! Não existe pedra no caminho que não possa ser aproveitada para o próprio crescimento.
Lembre-se que cada instante que passa é uma gota de vida que nunca mais volta. Aproveite para evoluir e saiba tirar o melhor proveito, pois talvez não terá tantas outras chances de reconstruir. Amar como Jesus amou não é fácil, sabemos, mas se cada um tentasse aplicar isso em sua vida de vez em quando, quem sabe se tornaria um hábito natural?
Julgamos as pessoas e vivemos criticando o que fazem ou deixam de fazer, o que é próprio do ser humano, concorda? Mesmo assim, não é obvio que sem amor no coração as coisas não irão melhorar? E se um tratamento mais carinhoso não partir de quem critica, fica ainda mais difícil mudar o que está errado e reconstruir relacionamentos pacíficos.
Como é gostoso saber que somos compreendidos em nossas virtudes e defeitos! Durante a Festa Social de Nossa Senhora do Sagrado Coração, enquanto eu vendia doces, aproximou-se um cidadão chamado Gerson para dizer que comprava o jornal O Sul de Minas para ler semanalmente esta coluna. Fez mais alguns elogios e foi-se embora, mas ficou o sentimento positivo de reconhecimento pelo meu trabalho na evangelização. Pedi que não deixasse de rezar por mim, e eu rezo por ele.
Assim o Reino de Deus será construído: Ele falando e nossos corações aceitando cumprir Sua vontade. Um dia nos esforçamos mais, outros menos, mas todos os dias sem pecados mortais nas costas. Não é tão difícil como algumas pessoas imaginam; basta tentar e ver que o ‘bambu’ começará a crescer.
Até o Papa Bento XVI já foi ‘samambaia’ e continuaria sendo pelo resto da vida se não aceitasse o plano de amor que Deus tinha para a sua vida. Tenho certeza que transpôs barreiras imensas para servir com retidão e se tornou o nosso maior pastor. Segundo as palavras de Jesus, o que o Papa ligar na Terra será ligado no Céu.
Portanto, quem aprender a crescer como um bambu de 20 metros, faltará pouco para essa conexão com o Paraíso.
PAULO ROBERTO LABEGALINI -- Escritor católico, Professor Doutor da Universidade Federal de Itajubá-MG. Pró-reitor de Cultura e Extensão Universitária da UNIFEI
Eu até sei que ando me repetindo em alguns temas, mas hoje pela manhã, quando acordei e vi o que vi, não consegui pensar em outra coisa para escrever. Sexta-feira é um dos únicos dias em que não preciso sair da cama muito cedo e me dou ao luxo de descansar um pouco mais. Quando meu relógio tocou, entretanto, percebi que minha cabeça doía horrores. Assim, desliguei o despertador do celular e, como acontece com praticamente todo mundo que faz isso, acabei me perdendo nos braços de Morfeu.
Quando acordei, uma hora depois do previsto, por conta dos latidos de um dos meus cachorros, Floquinho, constatei que minha ajudante semanal, Fátima, havia chegado para dar um jeito na sujeira que se acumulada. Em casa, cada vez que alguém mexe no portão, os cachorros dão o alarde, o que, em parte, é um dos benefícios de se ter cães quando se mora em uma casa na cidade de São Paulo.
Estranhei, contudo, o fato do Peteco, normalmente escandaloso, não ter engrossado o coro dos latidos. Esperei alguns minutos, ainda com minha cabeça latejando e, como a Fátima não veio me dar nenhuma notícia de algo estava errado, relaxei e enrolei mais um tempinho. Como a dor não cedia e o estômago começou a roncar, eu me resignei a deixar o quentinho do quarto, causado por um aquecedor que virou a noite toda ligado, e desci para tomar café.
Ainda da escada, eu olhei para baixo e vi que os dois, Peteco e Floquinho, estavam ali, nas caminhas que deixo na sala, para os dois lordes, no intuito de evitar que almejem o sofá. O único problema é que eles não estavam sozinhos: com a maior naturalidade do mundo, Peteco saboreava uma pobre rolinha que abatera. A cena, ao meu sentir, era um tanto grotesca, pois ele tinha penas na boca, havia penas por todo lado e o pobre pássaro se encontrava disposto tal qual uma codorna assada, enquanto meu cachorro a lambia de cima a baixo. Compreendi, naquele momento, porque ele estava tão quieto, silencioso.
Passados dois primeiros minutos de terror, porque, de longe, com meus olhos ainda sonolentos e prejudicados pela cefaléia, eu fiquei em dúvida quanto à natureza do cadáver, sem saber se era um rato ou algum dos meus periquitos, eu passei ao sentimento de pena, da rolinha, é claro.
Na verdade eu mal conseguia olhar para a pobrezinha. Se um dia as rolinhas entrarem em extinção, não tenho a menor dúvida de que o Peteco terá que responder pela parcela de culpa dele. Só nesse mês, foram três. Se ele fosse um cão de rua, sem comida disponível, eu até entenderia que seria por conta da fome, mas nem de longe essa é a razão.
Além da vida ceifada inutilmente, ainda sobra para os humanos da casa, os servos, recolher um zilhão de penas que insistem em ficar pela casa, como vestígios de um crime que espera reparação. Às vezes eu me pergunto se um dia, em retaliação, as rolinhas e as pombas não vão se unir a fazer um ataque à casa do Cão Matador...
Mesmo sendo advogada, tenho dificuldades em elaborar argumentos sólidos em defesa das atitudes do Peteco. Na realidade, eu vivo é um conflito ético: de um lado está ele, meu cãozinho urbano, de instintos de caçador e, de outro, toda potencial família de uma rolinha que não voltará para o ninho para alimentar suas crias.
Hoje, olhando para trás, tenho saudades de quando Peteco era vegetariano, guardando sua ira para minhas plantas, indo de samambaias a orquídeas. Agora, quase uma cúmplice dele, vivo a esconder penas e a ocultar cadáveres, torcendo, contudo, para não encontrar penas verdes em qualquer manhã inocente...
CINTHYA NUNES VIEIRA DA SILVA- Advogada, mestra em Direito, professora universitária e escritora - São Paulo
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