PAZ - Blogue luso-brasileiro
Segunda-feira, 21 de Outubro de 2013
VALQUÍRIA GESQUI MALAGOLI - MELHOR LER AS ENTRELINHAS

Regozijo-me, todo ano, nos dias seguintes à semana de avaliações escolares de meus filhos. Esta é a hora de eles discorrerem, aliviados do estresse de antes, sobre como, por exemplo, usufruíram o poder das entrelinhas, nas redações. Tudo sem fazer chalaça a propósito, nem usar falsa modéstia. Em suma, eles escrevem e se descrevem com a concentração e as dificuldades comuns aos de sua idade.
Vejo-os progredirem em seu potencial de articuladores dos próprios pensamentos. Mais que isso, assisto-os potencializarem sua compreensão de mundo e defenderem seus propósitos, não obstante as incongruências e filosofias baratas que os cercam e seduzem. E vejo-os, na mesma medida, reconhecerem suas falhas sem diminuir a coragem.
Isso, na prática, resulta de vivermos numa sociedade cuja base de comunicação é a linguagem. Se desde o ventre materno temos uma íntima relação com a palavra, ou seja, pelo que nos vem do exterior, à medida que se cresce, amplia-se o vocabulário, e também o discernimento aumenta. Tanto melhor assim, já que este vai se fazendo imprescindível.
Anima-me, enfim – neste aspecto – observar esta geração que vem, em contraposição à maioria que, por sua vez, vai encurralada em círculos de gente imatura altivamente a desfilar seus pescoços compridos; gente entretanto incapaz de não tropeçar no próprio umbigo ou enxergar o que vai à vista d’olhos. Gente que não conhece a palavra apesar de julgar-se dona dela. Gente que vocifera “sim” ou “não”, menos porque não é morna, e mais porque não tem – na alma – versatilidade vocabular bastante para o diálogo.
Que o bom uso deste instrumento cala guerras ou as deflagra, quem não sabe? Mas, o que determina o fim é ter humildade para o aprendizado constante, à custa, inclusive, de educar um espírito prepotente, ou, ao invés, ter à disposição uma corja que o instigue.
O essencial está nas entrelinhas. Para bom entendedor meia palavra basta.
Valquíria Gesqui Malagoli, escritora e poetisa, presidente da Academia Feminina de Letras e Artes de Jundiaí. vmalagoli@uol.com.br / www.valquiriamalagoli.com.br
JOSÉ RENATO NALINI - A LEPRA DO PAPADO
O egoísmo não poupa ninguém. Mesmo os que se dedicam à vida religiosa tendem a se considerar melhores do que os pagãos, infiéis ou ateus. Isso é normal. A condição miserável da espécie humana. Falível e vulnerável. Preenche a sua finitude com a pretensão. Não faltam orgulho e vaidade aos homens. O difícil é alguém no topo da pirâmide reconhecer e afirmar isso. A coragem do papa Francisco me sensibiliza. Temo até por sua vida.
Numa entrevista concedida exatamente no dia em que ele prosseguia nas esperadas reformas da Cúria, ele disse que tudo fará para mudar a natureza introspectiva e vaticanocêntrica da Santa Sé. A burocracia, a inveja, a maledicência, tudo conspira para que o ambiente que deveria ser de santidade, seja exatamente “a lepra do papado”. A pompa histórica, o formalismo, o ritualismo estéril, podem afastar a substância da religião que é – etimologicamente – a religação da criatura ao Criador.
Quem recebeu por carisma levar o irmão ao Cristo é obrigado a tentar se aproximar do paradigma. E Jesus era o amor, a disponibilidade, a singeleza, o perdão. Para aqueles que se aproximam da Corte Pontifícia, parece interessar mais é o mando, os cargos, as honrarias. Que felicidade o papa enxergar isso! Será que ele conseguirá contaminar com esse vírus do bem toda a hierarquia?
E fazer com que a Igreja se volte aos primeiros tempos, em que os cristãos eram identificados porque se amavam? “Vede como se amam!”. Esse o exemplo, muito mais eficiente do que pregações retóricas, homilias que saem da boca e não do coração. Exemplos de doação integral, que nunca faltaram, pois a Igreja é santa e pecadora. Mas precisa investir na santidade e reconhecer o desvio para a senda pecaminosa.
Além disso, o egoísmo é a característica natural de todas as instituições humanas. Não há conjunto de pessoas, sistema ou projeto que deixe de ser envenenado pelo personalismo, pelo narcisismo, pela vaidade, orgulho e ambição de ter cada vez mais influência e poder.
A Igreja tem de ouvir o papa Francisco e deixar de negligenciar os excluídos. Hoje cuida preferencialmente de seu jardim, atenta ao perfume de pretensa santidade dos ratos de sacristia. Cumpre buscar o marginal, a criança, o jovem perdido e o velho abandonado ao naufrágio da velhice e atender ao chamado para renovar a face da Terra.
JOSÉ RENATO NALINI é Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, biênio 2012/2013. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE - FEIRA DA AMIZADE

A Feira da Amizade neste ano aconteceu num misto de nostalgia, romantismo e inovação. Idealizada e organizada, no final da década de 60, por Da. Mercedes Ladeira Marchi, que tem olhos aprimorados e sensíveis para as dificuldades de inúmeras e inúmeros, marcou, por décadas, a vida de incontáveis jundiaienses.
Trabalhei, por alguns anos, na Barraca dos Importados, sob o firme e dedicado comando da Profa. Maria de Lourdes Torres Potenza. Nas barracas, éramos todos voluntários de idades diversas. No ambiente não existiam lamúrias a respeito de um possível cansaço. Os aromas diferentes da cozinha dos países participantes davam um ar de viagem. E havia dança típica ritmada pelas palmas. Vestíamo-nos de trabalho e festa. Foi sempre assim: solidariedade com alegria. Quando o evento deixou de existir, ficou um vácuo. Setembro perdeu um pouco o seu florescer.
Assim que assumiu a presidência do Fundo Social de Solidariedade, nossa primeira dama, Margarete Geraldo Bigardi, dentre seus sonhos, revelou o de trazer de volta a Feira da Amizade. Recordei-me de uma colocação de Rubem Alves: “Aquilo que está escrito no coração não necessita de agendas porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno”. Compreendi que o acontecimento marcara o coração e a juventude da presidente do FUNSS.
Em suas visitas às entidades, para conhecer o trabalho e as integrantes, os olhos da Margarete brilhavam ao se referir a um setembro que ficara no passado e que ela, agora, se propunha a fazê-lo presente, de acordo com a atualidade. Mais do que um projeto formatado, estava a batida de seu coração para que retornasse aquilo que trouxera generosidade e beleza. A Da. Mercedes e a Margarete são bem assim: do empoderamento social com alma grande e meiguice.
A Associação “Maria de Magdala” esteve presente com duas barracas: uma de quitutes e outra de artesanato. Decidimos que as quituteiras e as artesãs estivessem no local, comercializando seus produtos com renda integral para elas. Uma experiência fantástica! Sentiram-se parte da organização e se perceberam capazes de integrar-se em outros eventos. As oportunidades e o convívio são sempre mais importantes que o lucro financeiro. A entidade, em espaços como esse, ganha visibilidade e propostas posteriores. Uma das mulheres da Magdala, por exemplo, passou a produzir tapetes de crochê, com barbante cru, para um artesão de Alagoas, que trabalha com tear. Já entregou a primeira encomenda, com 25 tapetes, e recebeu antecipadamente.
A estrutura foi muito boa e os funcionários do FUNSS, o tempo todo a serviço, por demais solícitos e agradáveis no trato.
A Margarete conseguiu, com o apoio da Da. Mercedes, recuperar a rede da Feira e, com elas, prosseguimos tecendo solidariedade, que é a salvação de tantos.
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE - É coordenadora diocesana da Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena/ Magdala. Jundiaí, Brasil
PAULO ROBERTO LABEGALINI - SENSO DE GRATIDÃO

No mês de agosto de 2001, Moshê, um bem sucedido empresário judeu, viajou para Israel a negócios. Na quinta feira, dia 9, entre uma reunião e outra, ele foi fazer um lanche rápido numa pizzaria, esquina das ruas Yafo e Mêlech George, centro de Jerusalém. Logo ao entrar, Moshê percebeu que iria esperar muito tempo na fila e não dispunha de tanto tempo.
Impaciente, pôs-se a ziguezaguear perto do balcão de pedidos, esperando que alguma solução caísse do céu. Vendo a angústia do estrangeiro, um israelita perguntou-lhe se aceitaria entrar na fila à sua frente. Mais do que agradecido, Moshê aceitou. Fez seu pedido, comeu rapidamente e saiu em direção ao local da próxima reunião.
Cerca de 2 minutos depois, ele ouviu um estrondo aterrorizador. Assustado, perguntou a um rapaz que vinha pelo mesmo caminho o que acontecera. O jovem disse que um homem-bomba acabara de detonar um explosivo na pizzaria Sbarro`s.
Moshê ficou pasmo. Por apenas 2 minutos ele escapara do atentado! Imediatamente lembrou do homem israelense que lhe oferecera o lugar na fila. Atemorizado, correu para confirmar se ele necessitava de ajuda, e encontrou uma situação caótica.
A Jihad Islâmica enchera a bomba do suicida com milhares de pregos para aumentar seu poder destrutivo. Além do terrorista de 23 anos, outras 18 pessoas morreram, sendo 6 crianças. Outras 90 pessoas ficaram feridas, algumas gravemente.
As cadeiras do restaurante estavam espalhadas pela calçada. Pessoas gritavam e acotovelavam-se na rua tentando ajudar de alguma forma. Entre feridos e mortos estendidos pelo chão, vítimas ensangüentadas eram socorridas por policiais e voluntários. Um dispositivo adicional também estava sendo desmontado pelo exército.
Moshê procurou seu ‘amigo’ entre as sirenes sem fim, mas não conseguiu encontrá-lo. Precisava saber o que acontecera, se ele precisava de alguma ajuda e, acima de tudo, agradecer-lhe por sua vida. O senso de gratidão fez com que esquecesse da importante reunião que o aguardava e começou a percorrer os hospitais da região.
Finalmente encontrou o israelense num leito de hospital. Estava ferido, mas não corria risco de morte. Moshê conversou com o filho daquele homem, que já estava acompanhando o pai, e contou tudo o que acontecera. Disse que faria tudo que fosse preciso por estar extremamente grato àquele que lhe salvou a vida. Depois de alguns momentos, se despediu do rapaz e deixou seu cartão com ele.
Quase um mês depois, Moshê recebeu um telefonema no seu escritório em Nova Iorque, contando que o israelita precisava de uma operação de emergência. Segundo especialistas, o melhor hospital para fazer a delicada cirurgia ficava em Boston, Massachussets.
Moshê não hesitou. Arrumou tudo para que a cirurgia fosse realizada dentro de poucos dias. Além disso, fez questão de ir pessoalmente receber e acompanhar seu amigo em Boston, que ficava a uma hora de avião de Nova Iorque.
Talvez outra pessoa não tivesse se esforçado tanto apenas pelo senso de gratidão. Alguém poderia ter dito: ‘Ele não teve a intenção de salvar a minha vida, apenas me ofereceu um lugar na fila’; mas Moshê sabia perfeitamente como retribuir um favor.
Naquela manhã de terça-feira, ele foi pessoalmente acompanhar seu amigo e deixou de ir trabalhar. Assim, pouco antes das 9 horas daquele dia 11 de setembro de 2001, Moshê não estava no seu escritório – 101º andar do World Trade Center Twin Towers.
Caro leitor, você considera isso uma mera coincidência? Se Moshê recebeu uma bênção especial pelo espírito de gratidão e amor ao próximo, por que não agimos sempre assim?
Um outro caso é do índio que foi ao relojoeiro e pediu:
– Conserte estes dois ponteiros. Há muito que não funcionam direito.
– Mas, onde está o seu relógio?
– Ficou lá em casa.
– Bem, mas se não trouxer o relógio, não poderei fazer o conserto! – disse o relojoeiro.
– Não há nada para consertar no relógio, só nos ponteiros. Você quer o relógio para, depois, poder apresentar uma conta bem salgada. Não trarei o relógio aqui.
Talvez achemos esse índio um ignorante, mas será que não agimos assim? Será que só estamos preocupados com as aparências e naquilo que os outros pensam a nosso respeito? Estes são os nossos dois ponteiros!
Queremos que eles andem bem; mas o relógio, o nosso coração que rege tudo, deve ficar como está? Não o entregamos ao Pai para que o conserte, pois tememos os custos – as mudanças mais profundas que poderiam acontecer.
Tememos expor os nossos pecados secretos e a imagem distorcida de Deus em nossos corações. Saímos bufando, dizendo que não precisamos de conversa porque não somos burros! Pensamos que o problema está nos ‘ponteiros’, mas, na verdade, o ‘relógio’ lá dentro é que precisa de conserto. Nosso coração necessita de cura, pois limpeza de fachada não resolve.
Sejamos, no mínimo, gratos ao nosso Criador, participando semanalmente da Santa Eucaristia.
PAULO ROBERTO LABEGALINI - Escritor católico, Professor Doutor da Universidade Federal de Itajubá-MG. Pró-reitor de Cultura e Extensão Universitária da UNIFEI.
FRANCISCO VIANNA - A SOCIOLOGIA DO PRETO E BRANCO
UMA VISÃO CRÍTICA PESSOAL SOBRE A NOCÃO DE DITADURA E DEMOCRACIA EM FUNÇÃO DOS RESULTADOS SOCIAIS CONQUISTADOS.
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O que é um ditador ou um déspota autoritário? Muita gente pensa que sabe, mas a maioria desconhece da novela a maior parte dos seus capítulos.
Não há dúvidas de que Adolf Hitler, Joseph Stalin e Mao Tsé Tung eram ditadores e dos mais sanguinários, assim como o foram e ainda são os irmãos Castro em Cuba, a vitrine da miséria socialista mantida com a ajuda dos americanos, no Caribe, para o mundo ver.
Assim eram também Saddam Hussein, Hafez Assad e é o seu filho Bashar al Assad. Todavia, em muitos casos, a situação não é tão simples e tão gritantemente explícita e, em muitos casos, a realidade – e a moralidade – dos regimes autoritários é muito mais complexa.
Todo mundo sabe que a China sempre viveu sob o tacão de ditaduras e de imperadores e que, desde a “revolução cultural” de Mao Tsé Tung, o país é uma ditadura comunista um tanto atípica em relação ao sovietismo russo e ao nazismo-fascismo deuto-italiano, por exemplo, todas elas manifestações diferentes da mesma sociopatia: o socialismo.
Sabe-se, também, que Deng Xiaoping era um ditador, certo? Certo. Afinal de contas, ele era o chefe do Partido Comunista da China de 1978 a 1992, partido único – a contrariar o próprio nome “partido”, ou seja, “parte” e não o todo – típico dos regimes ditatoriais.
Como todo ditador, ele não foi eleito, correto? Errado. Às vezes, um líder é democraticamente eleito, mas, na primeira oportunidade, subverte a democracia que o elegeu e a torna uma ditadura dentro do viés ideológico que representa. Mas o oposto também às vezes acontece.
Xiaoping governou pelo medo e aprovou, entre outras medidas, o massacre de manifestantes na Praça de Tiananmen (ou da “Paz Celestial”), em Pequim, em 1989. Aconteceu, no entanto, que ele também levou a China na direção de uma “pseudoeconomia de mercado” elevando o capitalismo de estado chinês a níveis que nenhum outro governo amarelo o tinha feito antes, por permitir e incentivar a ida para o seu país de muitas empresas capitalistas privadas ocidentais atraídas pela mão de obra então extremamente barata e produzir o maior “boom” econômico da sua história.
Como não podia deixar de ser, o país, cautelosamente, sem fazer maiores concessões políticas à sua população, não teve alternativa senão a de permitir que empreendedores privados prosperassem, enriquecessem, e com isso começassem a gerar muito mais riqueza e trabalho (e, portanto, maior grau de liberdade pessoal) do que o estado chinês jamais fora capaz de fazê-lo.
Destarte, mesmo sendo um ditador, muitos consideram Deng Xiaoping um dos maiores homens do século XX, do nível de um Winston Churchill ou um Franklin D. Roosevelt.
Assim, cabe a pergunta: Seria justo colocar Deng Xiaoping na mesma categoria de Saddam Hussein, ou mesmo de Hosni Mubarak, o ditador egípcio cujo despotismo pouco fez para preparar seu povo para uma sociedade mais aberta e representativa? Afinal, nenhum desses três homens foi eleito por suas populações, mas nomeados por seus grupelhos burgueses dos politiburos dominantes e todos eles governaram com a mão de ferro e o tacão do medo. Então, por que não juntá-los todos na mesma categoria?
Ou o que dizer de Lee Kuan Yew e Zine El Abidine Ben Ali? Durante as fases iniciais do governo de Lee, em Cingapura, esse líder, com certeza, se comportou como um autêntico déspota, como também fez Ben Ali, durante todo o seu governo na Tunísia.
Assim, então, não merecem eles serem rotulados como ditadores? Isso porque, afinal de contas, Lee elevou extraordinariamente o padrão de vida e a qualidade de vida em Cingapura do nível equivalente a alguns dos países mais pobres de África na década de 1960 para o dos países mais ricos do Ocidente, no início dos anos 1990. Ele também instituiu a meritocracia, a boa governança, estimulou intensamente a escolaridade da sua cidadania, o planejamento urbano humanizado e de classe mundial. A autobiografia, em dois volumes, de Lee nos faz lembrar as páginas da obra de Plutarco “As Vidas dos Nobres Gregos e Romanos”.
Ben Ali, contrastadamente, era tão somente um bandido a serviço da segurança tunisina que combinou a brutalidade com níveis extremos de corrupção, e cuja regra era praticamente a ausência de reformas. Como Mubarak, no Egito, ou Lula da Silva, no Brasil, que ofereceram não mais do que mera estabilidade política a seus países.
O ponto a ser considerado é o seguinte: quando se divide o mundo entre ditadores e democratas, como se só existissem duas cores, preto e branco, no espectro da complexidade política e moral vigente pelos governos, essas duas categorias de líderes e de regimes passam a ter um sentido por demais amplo para que possam ser adequadamente compreendidos pela maioria de seus povos e respectivos governantes – e, portanto, para uma adequada compreensão da geopolítica num determinado período da História.
Há certamente alguma virtude no pensamento contundente dos pronunciamentos simplistas de todos esses líderes, uma vez que simplificar padrões complexos é o que permite que eles e as pessoas dos povos que governam vejam algumas verdades fundamentais subjacentes que eles podem, a um preço variável pago com liberdade individual e distribuição quase sempre igualitária da pobreza, garantir de um modo ou de outro. Mesmo porque a realidade é, pela sua própria natureza, complexa e muita simplificação leva a uma visão não sofisticada, simplista e, por isso mesmo, distorcida do mundo.
Um dos fortes argumentos dos melhores intelectuais e geopolíticos é essa tendência para recompensar o pensamento complexo e a sua capacidade de entendimento para estabelecer distinções mais refinadas. Aliás, distinções refinadas devem, em conjunto, ser o objetivo central da ciência política e da geopolítica. Isso significa que há os que reconhecem no mundo a existência de maus democratas e também de bons ditadores.
Os líderes mundiais em muitos casos, não devem ser classificados por tais padrões dicotômicos como se apresentassem em preto e branco, mas em vários tons de cinza, do mais profundo negro ao branco mais alvar.
Na verdade, o autoritarismo e sua variante exagerada, o despotismo absoluto, surge em decorrência da qualidade da cidadania que a eles se deixa subjugar. Assim, as ditaduras dependem mais dos povos do que dos seus agentes despóticos. Quanto menos escolarizado e politizado é um povo, mais necessita de um estado que os dirija em tudo, de um governo “big brother”, que diga a essa cidadania de má qualidade o que deve fazer com relação a praticamente tudo. Daí, ser a democracia um regime dos países mais adiantados, de maior escolaridade, de maior civilidade. é ainda um regime muito difícil e até incompreensível para muitos povos atrasados do planeta, que na grande maioria das vezes jamais viveu de forma representativa. Tudo isso explica porque os regimes populistas, demagogos e autocráticos tratam seus povos como se estivessem lidando com crianças ou débeis mentais.
Foi assim que Hugo Chávez Frías, um coronel do exército venezuelano, com um currículo de tentativas de golpes de estado, acabou sendo eleito pelo povo e manteve-se no poder até a morte, por câncer, em 2012. Era, pois, teoricamente, um democrata. Mas seu comportamento era tão despótico quanto o seu grito: “Venezuela, socialismo o muerte!”. Acabou morrendo antes de tornar o país totalmente socialista, mas entregando-o praticamente ao controle dos irmãos Castros de Cuba. Foi um mau democrata e um pior ainda caudilho autoritário que arrasou a economia de seu país com suas medidas socialistas inspiradas por seus tutores cubanos.
Podemos considerar, por exemplo, o caso da Rússia. Na década de 1990, a Rússia foi governada por Boris Yeltsin, um homem elogiado no Ocidente por ser um democrata. Mas seu governo, indisciplinado, levou o país a um considerável caos social (político e econômico). Vladimir Putin, por outro lado, está muito mais para um ditador – e a cada dia mais se comporta como tal – e tem sido consequentemente desprezado no Ocidente. Mas, ajudado pelos preços da energia, ele recuperou a Rússia com algumas medidas que trouxeram inicialmente estabilidade e, a seguir, melhoraram drasticamente a qualidade de vida da média dos russos. E ele fez isso sem recorrer a um nível de autoritarismo dos tempos bolchevistas – com os desaparecimentos em massa em de campos de trabalhos forçados na Sibéria – ou dos czares com seus agentes a arregimentar infanto-juvenis para o serviço militar.
Finalmente, há os casos mais moralmente chocantes de todos: o do falecido ditador chileno Augusto Pinochet e o da chamada ditadura militar brasileira. Nos anos de 1970 e 1980, Pinochet criou mais de um milhão de novos postos de trabalho no Chile, reduziu a taxa de pobreza de um terço para menos de um décimo, e a taxa de mortalidade infantil de 78 por mil para 18 por mil habitantes. O Chile de Pinochet foi um dos poucos países não asiáticos no mundo a experimentar níveis asiáticos de dois dígitos de crescimento econômico na época. Pinochet preparou o seu país muito bem para uma eventual democracia, assim como sua política econômica tornou-se um modelo para o mundo em desenvolvimento pós-comunista. Mas Pinochet também é justamente o objeto de ódio intenso entre os liberais e “humanitários” de todo o mundo, por perpetrar anos de tortura sistemática contra dezenas de milhares de vítimas. Nada comparável é claro com a execução sumária de mais de setenta mil pessoas em Cuba por Fidel Castro e sua trupe de facínoras, tendo a testa o ‘médico’ argentino e carniceiro-mor Ernesto Guevara, o “Che”. Então onde é que Pinochet fica no espectro em preto e branco da classificação de líderes? No Chile, tal ódio ao general é confrontado com o sentimento de muitos que o consideram como o maior dos patriotas heróis da nação andina de todos os tempos.
Sem comparação, em termos de número de vítimas, vem a ditadura militar, que muitos consideram uma “ditamole”, implantada no Brasil em 31 de março de 1964, como um contragolpe ao regime do presidente João Goulart, cuja cúpula socialista se preparava para instaurar no país uma ditadura nos moldes – e financiada – da então União Soviética, que tinha em Havana o seu entreposto de exportação de sua revolução marxista.
Os sucessivos governos militares que se sucederam por duas décadas restringiram a democracia a um nível de atividade apenas local, mas, em compensação, imprimiram ao país uma série de medidas que possibilitaram estabelecer as bases que tornaram o Brasil de hoje a sétima economia do mundo e uma potência emergente. Mas, os militares acabaram também criando um estado agigantado que em muitos aspectos inibiu o crescimento do capitalismo privado, dando origens às condições que facilitaram a tomada do poder pela esquerda socialista e marxista, que está subvertendo a própria estrutura institucional democrática e impedindo a formação de uma cidadania de melhor qualidade.
Longe de desenvolverem uma meritocracia, os militares brasileiros não foram sensíveis ou prudentes o suficiente para melhorar as condições de escolaridade daqueles que se diziam cidadãos e que teriam o dever de contribuir, quer com seu bolso quer com sua atividade política, na manutenção e aperfeiçoamento do país. Isso não só deixou de ocorrer como no Chile, mas manteve a cegueira política da maioria da população que não está preparada para votar com consciência e racionalidade.
Nesse aspecto, pode-se considerar sem muito medo de errar, que a ditadura Pinochet, muito mais cruel e implacável com seus inimigos que a ditadura militar brasileira, foi uma ditadura muito melhor para o seu país do que a dos militares foi para o Brasil, onde o diferencial prático foi justamente o preparo da sociedade para a democracia que mais cedo ou mais tarde aconteceria em ambos os países.
O resultado é que, hoje, o Chile – uma economia muitíssimo menor que a brasileira – se tornou um país desenvolvido e de primeiro mundo, ao passo que o gigante Brasil continua a patinar num subdesenvolvimento autossustentado pelo socialismo imposto, em grande parte pela falta de preparo da sociedade, ao longo de duas décadas de regime militar, sem que a cidadania fosse diretamente melhorada para uma “abertura democrática” realmente autêntica. Isso permitiu uma abertura farsesca e a ascensão de uma esquerda “sucialista” – um socialismo de súcia, de quadrilheiros, de ladrões do erário – que age no sentido de transformar o país numa versão agigantada da ilha caribenha dos Castros.
Assim, no mundo, os governos adquirem muitos tons de cinza no espectro político monocromático que muitos querem simplificar reduzindo-o ao maniqueísmo do preto e branco. Às vezes também é penoso tentar situar qual o tom de cinza corresponde a um determinado líder ou regime e a questão de saber se os fins justificam os meios não deve ser respondida apenas de forma doutrinária, filosófica e metafísica, mas também pela observação prática dos resultados que apresenta.
Às vezes, os meios não estão ligados às extremidades e o líder é, pois, condenado, como é o caso do Chile. Em outros casos, apesar dos resultados extraordinários conseguidos, falta aos líderes a necessária visão de como será a democracia de amanhã, como foi o caso do Brasil.
Tal é a complexidade do universo político e moral que as distinções sutis e refinadas quando aplicadas aos regimes políticos, são os fatores básicos do progresso de um povo. Caso contrário, tanto a geopolítica quanto a ciência política em si e as disciplinas relacionadas podem distorcer mais do que iluminar líderes e cidadãos.
Quinta feira, 17 de outubro de 2013
FRANCISCO VIANNA- Médico, comentador político e jornalista - Jacarei, Brasil
HUMBERTO PINHO DA SILVA - A BRAGANÇA QUE CONHECI

Na década sessenta, residi em Bragança. Foram quase quatro anos passados no BC3, onde cumpria serviço militar, e com família brigantina, que recebia hospedes.
Nesse tempo, a cidade tinha um ar provinciano. Não havia largas avenidas nem movimento, e o comércio era pouco desenvolvido.
Mas era burgo acolhedor, e população que sabia receber, como poucos, os forasteiros.
Meus passeios favoritos eram pelos arrabaldes, em companhia de amigos. Chegamos a ir, a pé, a França, e muitas vezes a Gimonde, ou deambulávamos pela empinada estrada, que servia a pousada.
Tive muitos amigos, cujos nomes esqueci. Recordo que um era bibliotecário da Gulbenkian. Em dia e hora certa, estacionava a carrinha na Praça da Sé. Era um gosto ver crianças e estudantes, em busca de leitura.
Frequentávamos, entre outros, as cafetarias: “ Chave d’Oiro“ "Lisboa ", “ Central “, e por vezes, o” Floresta “.
Mais tarde, apareceu, virado para a velha Sé, o “ Florida “. Era o último grito. O café da moda.
Mas sempre, o mais elegante foi o” Chave d’Oiro” e o “ Poças “, que era pensão bem frequentada, com pessoal simpatiquíssimo.
À noitinha, depois do Sol recolher-se, nos dias quentes de Verão, passávamos pelo café “ Floresta “, e ficávamos a cavaquear, pela noite dentro, no jardim sobranceiro ao Fervença, que só se enfurecia no pino do Inverno.
Nesse amplo terreiro, reuniam-se os jovens, em magotes, ou aos pares de namorados, a passearem ao som de música alegre.
Estava em voga o Roberto Carlos, que “ mandava tudo para o inferno”.
Dos médicos, da cidade, conheci o Flores. Clínico que usava formulas “ milagrosas”, que diziam serem eficazes.
Havia também o Pires, famoso pelos numerosos filhos.
Nessa época, o BC3, era composto por casarões, mal amanhados, que nem cercado tinham. Vi, mais tarde nascerem, quase pegado, o novo quartel.
Convivi com o sargento Mário, que era solteiro, e tinha uma filha pequena. Vivia numa pensão, no centro.
Homem atencioso, quase paternal, apesar da rigidez militar.
Deixou-me o cargo que ocupava nas Escolas Regimentais, onde Padre Telmo, de longe a longe, fazia curiosas palestras.
Guardo, como recordação, louvor, pela forma como orientei o ensino. O professor Bi, soube fazer exames tão acessíveis, que todos passaram, e todos receberam diploma. Decorrido alguns anos, já a viver no Porto, indo de comboio paras Bragança, fui abordado por homem, bem aprumado e musculoso, fardado de polícia e de largo sorriso no rosto. Cumprimentou-me de mão estendida:
- Já não me conhece? Fui seu aluno. Graças a si obti o diploma que me permitiu entrar na polícia.
Nunca mais me esqueci disso.
Voltemos ao sargento Mário.
Certa vez ,já no Porto, a conversar com senhora, na rua do Bonjardim, ao saber que era de Vinhais, perguntei-lhe, se conhecia o 1º sargento Mário.
Respondeu-me que sim. Chegou, em menina, a ter namorico com ele. Coisas de crianças.
Como vêm o mundo não é tão grande como se pensa.
Acicatado pela saudade, fui mais tarde visitar Bragança. Encontrei-a remoçada. Vestida de vestes mais citadinas; mas senti saudade da cidade de outrora; e conservo, ainda, lindas recordações de cenas de profunda ternura, que cavaram bem fundo, e gravaram-se para sempre.
HUMBERTO PINHO DA SILVA - Porto, Portugal
EUCLIDES CAVACO - RIMAS DO MEU PAÍS
RIMAS DO MEU PAÍS É na poesia que mais me revejo e relaciono com o meu BERÇO PÁTRIO que eu e muitos filhos adoram, mas muitos outros ingratamente exploram. É com inequívoca portugalidade que vou expressando as minhas rimas nesta línguagem doce, terna e maravilhosa que é a LÍNGUA PORTUGUESA e que com prazer ofereço a todos vós. Ouça e veja este tema em PS ou aqui neste link:
Euclides Cavaco - Director da Rádio Voz da Amizade.London, Canadá
Segunda-feira, 14 de Outubro de 2013
JOÃO CARLOS MARTINELLI - NO DIA DOS MÉDICOS, UMA REVERÊNCIA AOS MÉDICOS SEM FRONTEIRAS

Comemora-se a 18 de outubro o Dia dos Médicos, em homenagem a São Lucas, padroeiro da medicina e cuja data consta da tradição litúrgica. Ele exercia a profissão de médico e também tinha vocação pela pintura. Foi o autor do terceiro evangelho e o “o ato dos apóstolos” da Bíblia Sagrada. Nasceu na Turquia no século I, quando esta ainda se chamava Antióquia. Discípulo de São Paulo, ele o seguiu em missão, sendo chamado pelo religioso de “colaborador” e “médico amado”.
O Dia dos Médicos se constitui numa data extremamente significativa por homenagear uma das mais importantes categorias profissionais do mundo. Aproveitemos a celebração para reverenciar uma organização não governamental de Direitos Humanos, que em 1999, recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Trata do grupo Médicos Sem Fronteiras, entidade internacional de socorro que agrupa mais de dois mil médicos em oitenta países com a finalidade de dar assistência urgente e eficaz a populações que, atingidas por flagelos naturais ou vítimas de conflitos, estejam indefesas. Além desses profissionais, a entidade, com seu secretariado executivo instalado em Bruxelas dispõe de enfermeiros, pessoal de laboratório, estrutura logística e técnicas administrativos espalhados em doze sedes nos cinco continentes.
Num mundo em que os anseios populares são freqüentemente desrespeitados e numa época em que o profissionalismo ganha visíveis caracteres mercantilistas, essa organização se revela num comovente exemplo de solidariedade, desenvolvendo um trabalho humanitário, independente e civil, numa verdadeira cruzada em favor da universalização, sem fronteiras, da defesa dos direitos do homem, enaltecendo um de seus princípios básicos: “As fronteiras nacionais e as circunstâncias ou afinidades políticas não devem ter nenhuma influência sobre a questão de saber quem deve receber a ajuda humanitária”.
A organização surgiu na década de 60 na França quando alguns médicos, sensibilizados com o drama da província nigeriana de Biafra, resolveram atender gratuita e espontaneamente a sua população, que se encontrava doentia, em estado de absoluta miséria e manifestamente desnutrida. A partir daí, criaram o lema: “Todas as vítimas de desastres de origem humana ou natural têm direito a uma assistência profissional prestada com rapidez e com a maior eficiência possível”.
A atuação do grupo orgulha e emociona a todos. Para muitos indivíduos, instituições e entidades, é um exemplo de que a cooperação entre os povos é capaz de propiciar uma autêntica justiça social. Sua obra nos inspira a refletir sobre a necessária conscientização na busca de um mundo solidário e socialmente equilibrado, reafirmando que os direitos só valem na medida em que se enraízam no respeito à dignidade humana, dele derivam, são sua expressão e a ele se referem.
JOÃO CARLOS JOSÉ MARTINELLI é advogado, jornalista, escritor e professor universitário.
RENATA IACOVINO - A PRÁTICA DA INSENSIBILIDADE

Em suma, a vida não é coisa que se leve a sério.
Esta é uma lição que estou custando a aprender. E pelo andar da carruagem... vai ficar para minha próxima estadia por aqui. Se houver.
Lá estou eu a falar sério de novo.
E como eu ia dizendo, como ser sério? Há um tom jocoso no ar.
A vida nos tira sarro 24 horas. Quem padece deste mal, é sempre colocado à prova.
Você leva a sério o trabalho e quem não leva fica de braços cruzados olhando você trabalhar por ele e por outros, e ainda tira uma com a sua cara.
Você leva a sério a política e... bobagem, isso é brincadeira desde que nasceu. Farsa, engodo, jogo de faz de conta.
Você leva a sério a amizade e uma avalanche de intempéries vão deflagrando que tudo não passou de ilusão.
Você leva a sério o amor, mas ele brinca de se esconder.
Você leva a sério o que fala e é motivo de chacota, pois a palavra de ordem é a piada.
Você leva a sério a palavra e descobre que ela está em fase de extinção, fazendo-o sentir-se um dinossauro abandonado e solitário.
Você leva a sério a felicidade e dá de cara com todos os argumentos que o fazem crer que ela nunca existiu.
Você leva a sério a humanidade e... ih, descobre que de humano há pouco na humanidade.
Não sei como administrar tanta falta de seriedade. Talvez seja um defeito que venha desde muito cedo. Adolescente, já gostava de brincadeiras sérias: pensar, conversar, debater, olhar no olho, ouvir música boa, cantar, escrever, ajudar o outro, conversar com o outro, exercitar o corpo e a mente, respeitar os mais velhos, porém ter senso crítico...
Tudo muito sério. Tão sério que serviu de base para algo concreto, mas que hoje tem pouca utilidade. Afinal, melhor seria ter sido oco, alienado, surdo, mudo, artificial, covarde, hipócrita, incompetente, intolerante, egoísta... Tudo isto, exercitado à época, não me custaria, hoje, o sacrifício de sobreviver num planeta estrangeiro, de sentimentos estrangeiros, de ausências conformadas, de solidões cavadas, de suicídios inconscientes, de fábrica de crentes, de sofredores descrentes, de adultos imaturamente juvenis, de jovens carentes de infância, de crianças necessitadas do essencial, de deuses absurdos...
Preciso me adequar à maioria e enxergar, enfim, piada em tudo. Caso contrário, serei enforcada, em breve, por minha incapacidade pragmática e fisiológica.
Renata Iacovino, escritora e cantora / reiacovino.blog.uol.com.br /
reval.nafoto.net / reiacovino@uol.com.br
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE - LIBERDADE AINDA QUE TARDIA

“Libertas Quae Sera Tamen”, expressão que adorna a bandeira do estado de Minas Gerais, traduzida como “Liberdade ainda que tardia”. O texto em latim, proposto pelos inconfidentes para marcar a bandeira da república, que idealizaram, no final do século XVIII, foi retirado da primeira Écloga de Virgílio e me traz sempre a figura intensa e imensa de Tiradentes, que reverencio por sua coragem em enfrentar os grilhões do poder da época.
“Liberdade ainda que tardia”. Semana da Pátria. Desfile da Independência no bairro. Houve na casa, onde reside a moça, um burburinho diferenciado das filhas. Durante a noite acordavam sobressaltadas pelo medo de perder hora. A escuridão lhes respondia que não chegara ainda o momento de vestirem as roupas com brilho e o calçado que lhes reportava aos sapatinhos de cristal da Cinderela. Na avenida ensolarada nada trouxeram da Gata Borralheira, história dos Irmãos Grimm, cuja personagem principal dormia junto às cinzas com suas dores pelos desagrados dos acontecimentos, até que surgiram os sapatinhos de cristal. A professora de ginástica artística, em cada ritmo, em cada gesto, as desejou com passos nobres pelo asfalto. As fantasias continham encanto e sonho e sinalizavam que é possível com dedicação, dignidade e perseverança, ultrapassar tons desbotados e insalubres da miséria. A mãe, de vida sofrida e coração estrangulado, entrara no compasso da ansiedade de suas meninas e, na véspera, renunciou às substâncias que usava, há anos, para se aguentar. Tinha consciência de que não seria fácil. Abster-se do álcool ou das drogas significa se encontrar com ela mesma em suas angústias, arrependimentos, contradições, questionamentos, dificuldades... O corpo exigia, com violência e tremor, a pedra, a erva, o pó... A vontade atara-se às drogas fazia anos. E quando a vontade se torna escrava, as sequelas são muitas: a pessoa pisoteia a prudência e o equilíbrio, infringe a lei e reage de incontáveis formas negativas para conseguir mascarar a lucidez.
“Liberdade ainda que tardia”. Pelo menos naquela manhã de festa, a mãe se suportou. Compareceu para admirar as filhas vestidas dos mais belos contos infantis. Custosa e obscura era a sobriedade com soluços. Sua pele, opaca pelas substâncias que a comandam, não refletiu a claridade da manhã. Contudo, juntou os cacos de sua existência com o propósito de aplaudir as filhas. Possuem, mãe e filhas, uma cumplicidade e uma ternura que enternecem. Penso ser por isso que as meninas se preocupam em cuidar uma das outras, ao perceberem que a mãe não se encontra bem. Alguém por certo comentará que se fosse amor ela renunciaria aos animais peçonhentos dos subterrâneos pelas meninas. Não é tão simples assim quando os caminhos primeiros acontecem em meio a escombros. E os julgamentos e a descrença dos próximos arrebentam mais os destruídos por sua história.
Para homenagear as filhas, demonstrando o orgulho que sente delas, fez-lhes uma surpresa. Acompanhou pela calçada o desfile, segurando com firmeza uma sacolinha e com olhos de maré cheia. Lágrimas de emoção bonita engravidam de esperança, pois o Espírito de Deus paira sobre a limpidez das águas.
Ao final, deteve-se anônima e em solidão em uma esquina, à espera de suas meninas. Na sacola, uma faquinha e uma laranja um pouco murcha. Era o que possuía em casa. Descascou-a com muito cuidado e repartiu para lhes acalmar a sede.
Comoveu-me tanto! Partilhar delicadeza e afeto é um passo para romper algemas. Senha para a verdadeira independência. Penso que tropeçará, ainda, mais ou menos vezes, porém o seu gesto de carinho intensificou a minha fé de que haverá um tempo em que ela e as filhas, a um mundo que descrê e marginaliza, anunciarão em coro e com voz decidida: “LIBERTAS QUAE SERA TAMEN”.
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE - É coordenadora diocesana da Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena/ Magdala. Jundiaí, Brasil
CINTHYA NUNES VIEIRA DA SILVA - CRIANÇA FELIZ, FELIZ A CANTAR...

Quem acompanha meus textos já deve ter percebido que adoro tanto escrever sobre crianças como escrever sobre quando eu mesma era uma criança. Tive sorte de ter uma infância feliz. Não tínhamos luxo, mas não nos faltava nada, sobretudo amor e alegria. Fui privilegiada por ter pais amorosos e presentes, bem como irmãs amigas e companheiras.
É certo que, como toda família que se preze, tínhamos nossas eventuais diferenças, mas nada que nos pudesse ter afastado ou que tenha nos marcado negativamente. Em resumo, vivemos a infância típica, repleta de inocência, traquinagens, alguma desobediência eventual, mas prontamente corrigida, bem como cercada de amigos e familiares queridos.
Das minhas lembranças de vida, sem dúvida a infância é um local afetivo para o qual retorno em pensamentos sempre que posso. Lá tudo era novidade, conhecimento e encantamento. Nada se compara ao primeiro olhar que depositamos sobre as coisas do mundo e eu não me esqueço da alegria de descobrir o quanto o mundo é rico em vida e mistérios.
Amei ser criança, portanto. E vivi tão bem essa época que não vivo no desejo (inútil que seria) de voltar a sê-lo. Hoje sigo me encantando com as crianças que me cercam, sobretudo com meus sobrinhos. Fotografo mentalmente cada nova palavra que arriscam e vivencio suas descobertas como se eu estivesse começando tudo de novo.
Nesse Dia das Crianças eu desejo que, muito mais do que presentes, que as crianças possam estar a salvo da vilania de alguns adultos, que corrompem seus corpos e almas, retirando delas um tempo que nunca mais será capaz de retornar. Em troca, deixam dores e traumas inesquecíveis. Ninguém deveria ser vítima de ninguém, mas as crianças, sobretudo, deveriam estar, por um milagre divino, a salvo de qualquer mal. Que Deus proteja nossas crianças, a melhor versão que são da humanidade, nossa parte mais digna de viver sob esse céu e sobre essa terra...
Esses dias, assim, estou com a sensação de ter conhecido muitas pessoas ainda crianças, mesmo aquelas mais velhas do que eu. É que no facebook a maior parte das pessoas aderiu à onde de colocar fotos de quando eram crianças. As fotos oscilam entre lindas, emocionantes, hilárias, incríveis, meigas e nostálgicas. É impressionante tentar descobrir, em rostos ainda em desenho, os traços das pessoas que hoje conheço como adultos...
É quase como ter saudades do que não conheci, mas é um sentimento bom, de identidade e reconhecimento, de esperança de que, a despeito do que muitos de nós se transforma, um dia, ao menos, fomos criaturas diferentes.
CINTHYA NUNES VIEIRA DA SILVA - Advogada, mestra em Direito, professora universitária e escritora - São Paulo.
PAULO ROBERTO LABEGALINI - É DANDO QUE SE RECEBE

Gúbio, uma cidade na Úmbria, estava tomada de grande medo. Na floresta da região vivia um lobo feroz que, não somente devorava os animais, como matava os homens, de modo que todos viviam apavorados. Por isso, reforçaram as portas das casas e andavam armados quando saíam do povoado.
Certa vez, quando Francisco chegou naquele lugar, estranhou muito o medo do povo, percebendo que a culpa podia não ser unicamente do lobo. Havia no fundo dos corações uma outra causa que era tão destrutiva como parecia ser a intenção do lobo. E Francisco resolveu sair sozinho ao seu encontro, desarmado, mas cheio de simpatia, benevolência pelo animal e, como dizia, na força da cruz.
O perigoso lobo, de fato, foi ao encontro de Francisco pronto para atacá-lo, mas, quando percebeu as boas intenções do moço e ouviu como se dirigia a ele, parou de correr e ficou observando. As boas vibrações de Francisco de Assis anularam a violência do animal.
De olhos arregalados, o lobo viu que aquele homem o olhava com bondade. Francisco, então, falou para o lobo: ‘Irmãozinho lobo, quero somente conversar com você. E caso esteja me entendendo, levante, por favor, sua patinha para mim’.
O lobo, perante tão forte manifestação de amor, perdeu toda a sua maldade. Levantou confiante a pata da frente e, calmamente, a pôs na mão aberta de Francisco, que lhe disse carinhosamente: ‘Querido irmãozinho lobo, vou fazer um trato com você! Vai morar em minha casa, vou lhe dar comida, irá sempre me acompanhar e seremos amigos. Você também será amigo de todas as pessoas desta cidade, pois de agora em diante, terá casa, comida e carinho. Sendo assim, não precisará matar nem agredir mais ninguém para sobreviver’.
Com a‘promessa’ de nunca mais lesar nem homem nem animal, o lobo foi com Francisco até a cidade. Também o povo abandonou a raiva e começou a chamar o lobo de ‘irmão’. Prometeram dar-lhe o alimento necessário a cada dia. Finalmente, o irmão lobo morreu de velhice, fato que causou grande pesar no povoado.
Ainda hoje, encontra-se em Gúbio um sarcófago feito de pedra, no qual os ossos do lobo estão depositados e guardados com respeito durante séculos.
Esta história leva-nos à reflexão de quantas vezes deparamo-nos com ‘irmãozinhos’ agressivos, nervosos, impacientes, chegando mesmo a nos atingir com palavras ásperas. Se pararmos para pensar, talvez cheguemos à triste conclusão de que esteja ocorrendo com eles o mesmo acontecido com o animal de Gúbio.
Ele, o lobo, acuado, com fome, sem receber compreensão e carinho, respondia também da mesma forma, com medo, ódio e agressividade. Quando ficou frente a frente com o amor e a paz defendidos por Jesus e praticados por Francisco de Assis, o lobo não teve outra reação senão recuar em suas agressões, passando de inimigo a companheiro de todos.
Assim acontece em nossas vidas: se oferecermos azedume, palavras de pessimismo, rancor e intolerância, receberemos na mesma dose tudo aquilo que semearmos. Como dizia São Francisco:“É dando que recebemos”.
E você, leitor, sabe onde aprender lições de amor? Já imaginou o que aconteceria se tratássemos a nossa Bíblia do jeito que tratamos o nosso celular?
Pense como seria se: sempre carregássemos a Palavra de Deus conosco; déssemos umas olhadas nela várias vezes ao dia; voltássemos para apanhá-la quando a esquecêssemos em casa; a usássemos para enviar mensagens aos nossos amigos; a tratássemos como se não pudéssemos viver sem ela; a déssemos de presente às crianças; a usássemos bastante quando viajamos; e, ainda, lançássemos mão dela em caso de emergência!
Mais uma coisa: ao contrário do celular, a Bíblia não fica sem sinal, pois funciona em qualquer lugar. E não é preciso se preocupar com a falta de crédito porque Jesus já pagou a conta há séculos! E o melhor de tudo: não cai a ligação e a carga da bateria é para toda a vida. Ah, lembre-se disto, que também está nela: “Buscai ao Senhor enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto!” (Is 55,6).
Mesmo aqueles que plantam tempestade, sabem que Jesus Cristo, o maior Homem na História, não teve nenhum empregado, no entanto chamaram-no soberano. Não teve nenhum diploma, no entanto chamaram-no professor. Não tinha nenhum medicamento, no entanto chamaram-no doutor. Não teve nenhum exército, mas os reis temeram-no. Não ganhou nenhuma batalha militar, e conquistou o mundo. Não cometeu nenhum crime, porém o crucificaram. Foi enterrado, no entanto vive até hoje!
Sinto-me honrado por servir Aquele que mais me ama e, tudo o que há de melhor, oferece a mim gratuitamente. Não posso desprezar estas suas palavras: “Se me negar na frente dos homens, negá-lo-ei na frente do meu Pai no céu”.
PAULO ROBERTO LABEGALINI - Escritor católico, Professor Doutor da Universidade Federal de Itajubá-MG. Pró-reitor de Cultura e Extensão Universitária da UNIFEI.
FELIPE AQUINO - A POBREZA E A HUMILDADE DE MARIA
Maria,sendo Mãe de Deus nunca se orgulhou; mas permaneceu pobre e humilde
A Igreja ensina que Nossa Senhora foi escolhida por Deus “desde toda a eternidade” (Cat. § 488), para ser a Mãe do Seu Filho. Por causa de sua Maternidade Divina, ela foi sempre ‘Cheia de Graça” (gratia plena), concebida sem o pecado original, permanecendo Sempre Virgem (cf. Cat. §499), e Assunta ao Céu de corpo e alma. Pela altíssima dignidade de escolhida para ser a Mãe do divino Redentor, Maria nunca experimentou o pecado, nem o Original e nem o pessoal. S. Luiz de Montfort, fazendo coro com os Santos Padres, dizia que: “assim como o mar é a reunião de todas as águas, Maria é a reunião de todas as graças. Mas entre todas as virtudes de Nossa Senhora, podemos destacar a humildade e a pobreza. Ela é a Mulher humilde, pobre de espírito – exatamente o oposto de Eva soberba. Santo Irineu de Lião, doutor da Igreja (†202), disse que “a obediência de Maria desatou o nó da desobediência de Eva” (Ad. Haer.).
A humanidade foi lançada nas trevas do pecado e da morte, porque nossos primeiros pais foram soberbos e desobedientes a Deus. Pela humildade Jesus se tornou o “novo Adão” e salvou o mundo (Rom 5,12s). “Sendo Ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens. E, sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fil 2,6-8). Maria, a mãe do Senhor, tornou-se a “nova Eva”. Os santos ensinam que foi a perfeita humildade de Nossa Senhora que fez com que Deus a escolhesse para a mãe do seu Filho, eleita entre todas as mulheres. Ela mesma canta no Magnificat: “Ele olhou para sua humilde serva” (Lc1,48).

A soberba é o pior pecado. É o que levou também os anjos maus a se rebelarem contra Deus, e levou Adão e Eva à desobediência mortal para toda a humanidade. Alguém disse que o orgulho é tão enraizado em nós, por causa do pecado original, que “só morre meia hora depois do dono”.
Ser humilde é ser santo, é descer do pedestal, é não se auto-adorar, é preferir fazer a vontade dos outros do que a própria, é ser silencioso, discreto, escondido, é fugir das pompas e dos aplausos, como Maria. Sendo Mãe de Deus nunca se orgulhou; mas permaneceu pobre e humilde. São João Batista nos ensina a humildade de Maria: “Importa que Ele cresça e que eu diminua!” (Jo 3,30). Jesus exaltou os “pobres de espírito” (Mt 5, 1) como a Virgem Maria que precisou de muito pouco das coisas materiais para servir o Seu Filho e Senhor, e ser aquela que, como disse João Paulo II, “foi a que mais cooperou para a obra da Redenção da humanidade”. Olhemos e imitemos a Estrela pobre e humilde, que é nossa Mãe.
FELIPE AQUINO - Escritor católico. Prof. Doutor da Universidade de Lorena. Membro da Renovação Carismática Católica.