PAZ - Blogue luso-brasileiro
Quinta-feira, 30 de Outubro de 2014
JOÃO CARLOS MARTINELLI - A MORTE DÁ O CONCEITO DE NOSSA FINITUDE
No Dia dos Mortos também devemos refletir sobre a atual imunização da sociedade em relação à morte, quer por interesses de natureza política, social ou econômica, quer por motivos individuais, frutos do próprio egoísmo e da insensibilidade com que convivemos com nossos semelhantes. Vislumbra-se com tal quadro, um absoluto desrespeito a aspectos de ordem manifestamente moral, religiosa e jurídica.
No século X, o monge francês Odilon Cluny iniciou uma série de rezas e festas sacras para os cristãos mortos, em 02 de novembro de cada ano, costume que se espalhou por outras religiões. As pessoas acreditavam que, rezando para os falecidos, nesse dia, os vivos diminuiriam os castigos das almas que pecaram durante a vida terrena. Após quatro séculos, a Igreja Católica oficializou a comemoração, instituindo o Dia de Finados ou Dia dos Mortos, que chegou ao Brasil pelos portugueses. Na ocasião, os templos e os cemitérios são visitados, os túmulos decorados com flores e milhares de velas acesas, aspectos que já se tornaram tradicionais.
A data nos convida a refletir sobre a morte. Constatamos que raramente nos detemos a meditar e nem mesmo, lembramos dela, evento comum a toda a humanidade, inevitável e certo. Configura-se, efetivamente, num dos poucos fenômenos acerca dos quais temos absoluta certeza: basta ter nascido para que se venha a morrer. Tal desprezo se prende ao fato de que grande parte da sociedade, seja por interesses de ordem política, social ou econômica, seja por manifesto egoísmo ou insensibilidade, imunizou-se em relação aos seus efeitos.
Nessa trilha, invoquemos o agrônomo e doutor em Ecologia, Evaristo Eduardo de Miranda, ministro de exéquias (um leigo revestido pela Igreja com a missão de encomendar corpos):- “...a morte é uma denúncia violenta contra as ilusões e a busca de bens passageiros que não remetem o ser humano à eternidade. A morte é o maior antídoto contra a alienação humana, pois ela nos dá o conceito de nossa finitude. A exemplo do que acontecia com o sexo, antes da revolução sexual, a morte se tornou um tabu” (revista “Família Cristã”- 11/1998- pág. 09) (os grifos são nossos).
Por outro lado, a morte está sendo cada vez mais banalizada em nosso país e as conseqüências deste quadro, geram uma situação de quase absoluto desprendimento (“rei posto, rei morto”). Transformada em mera fatalidade biológica, as pessoas não se importam mais com a vida dos outros e ela passou a ser um evento quase neutro, revestido da aparência de mero espetáculo. Tanto que se assiste pela TV, a centenas de mortes por dia, numa visível demonstração de abandalhamento de princípios, que rendem exclusivamente, altos índices de audiência. “...Não morre o telespectador que, do lado de cá da tela, encara a morte como mera anulação do outro, sem choro nem velas, e se impregna de certa onipotência, pois a morte não o atinge. Pode desafia-la cavalgando uma moto, fazendo sexo sem preocupações, portando-se como se fosse o único a ficar eternamente vivo” (Frei Betto – “O Estado de São Paulo”- 02/11/04- pág. A.2).
O Direito consagra a vida como o mais valioso bem a ser protegido e impõe respeito aos mortos, tanto que considera crime a violação de sepultaras. Utiliza-se de conceitos científicos para caracterizá-la nos seus diversos reflexos legais (de acordo com a Resolução 1.346/91 do Conselho Federal de Medicina – CFM, a morte é diagnostica quando não há qualquer função cerebral) e incentiva a luta pela vida até o último instante, ao proibir a eutanásia (método pelo qual se procura abreviar a existência de um doente incurável, ainda que a seu pedido ou do seu representante legal). Apesar de todas essas circunstâncias, as pessoas ainda não tratam a morte como sendo rito de passagem, como deveriam entendê-la, tanto no aspecto religioso, como no moral, nem lhe outorgam as condições de dignidade exigidas por sua concepção jurídica.
Tais constatações nos levam à triste conclusão de que a solidariedade está se exaurindo no ser humano, tanto na vida – Dom maior de Deus -, como no final desta. Mais do que nunca, precisamos reverter o quadro sombrio que assola nossa natureza, voltando a encarar a existência e o seu final, inclusive, com o respeito e o rigor que suscitam, convivendo fraterna e responsavelmente com nossos semelhantes. A efetivação deste último objetivo inclui a busca do bem comum, no pleno respeito à dignidade humana e na garantia dos direitos que daí decorre. A morte realmente é uma circunstância normal do ciclo da vida, que não devemos temer, ao contrário, necessitamos acolhe-la com serenidade, requerendo-se para tanto, empenho no progresso de conversão pessoal e no testemunho de realizações fraternas.
REFLEXÃO
O Dr. Evaldo D’Assumpção, de Belo Horizonte (MG), fundador do “Cosmo”, instituição que oferece acompanhamento aos doentes terminais e seus parentes, sustenta que a angústia existencial que hoje toma conta do homem provém da negação que há depois da morte. “Em vez de crescer no conhecimento das verdades da fé como busca crescer nas ciências, o homem simplesmente as nega, abandonando tudo, como se, negando a própria transcendência, ele a fizesse desaparecer”. Há outro aspecto ressaltado por ele: “Numa sociedade onde as pessoas são educadas para negar a morte, onde o consumismo e as solicitações ao prazer nos incompatibilizam com ela, onde o apego exige a morte da morte, não é de se estranhar às dificuldades que todos nós temos para enfrentar esta realidade concreta que faz parte indivisível da vida. E mesmo se superarmos todos esses obstáculos, ainda restará um temor: o medo de morrer” (Revista Família Cristã, 11.89, p. 34. In: MARTINELLI, João Carlos José, Direito à Vida, Ed. Literarte, 2000).
JOÃO CARLOS JOSÉ MARTINELLI é advogado, jornalista, escritor e professor universitário (martinelliadv@hotmail.com)
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE - REALIDADE INTERIOR
Recentemente, tive acesso a um texto do Frei Savério Cannistrà, pregador da Ordem dos Carmelitas Descalços, a respeito da pedagogia de Santa Teresa de Ávila no contexto cultural e atual na Europa. Chamou-me a atenção o que ele diz sobre formação: “dar forma a uma identidade”. Sem dúvida sem moldes planejados. Explica que “a forma não é o revestimento externo de alguma coisa, independente e preexistente, mas é a manifestação de uma realidade interna, a qual, atingindo a maturidade, floresce em uma forma externa, isto é, em um modo característico e orgânico de viver e de pensar, de falar e de agir”. Diz o Frei que é o “não ‘se deixar viver’, mas tomar em mãos a própria vida e o próprio ser, e auscultando-o, ajudar a ‘formar-se’. (...) Dar à pessoa humana uma base segura, um espaço interior no qual esta possa existir, desenvolver-se e agir livremente no mundo”.
É fantástico o texto todo. Uma reflexão que se contrapõe à cultura do mundo contemporâneo. Hoje, com ressalvas, a estrutura do ser humano é voltada para a aparência e, a fim de que esse aspecto se destaque, se amplia a apologia aos bens de consumo, empregando-se meios lícitos e ilícitos em todas as classes sociais.
Fabrica-se uma sociedade de modelo pré-determinado, com gostos e reações semelhantes. Gosto de soberba e reação de violência. Gosto de prazer e reação de uso e abuso dos indivíduos mais vulneráveis. Gosto de ter e mãos fechadas para a partilha. Sociedade que reduz o humano. Sociedade de solidão, em que o indivíduo se adapta ao esperado pelos demais. A respeito da solidão, Frei Savério afirma que na atualidade é “o sinônimo da inexistência, pois existe somente aquilo que pode ser visto, conhecido e aprovado (ou desaprovado) pelos outros”. E quem ignora que a sociedade, na qual vivemos, é atormentada, amarga, combalida? Quem se preocupa em favorecer que os dons, dos que lhe são próximos, transbordem e façam, de cada um, singular no mundo?
O Frei nos convida a reformarmos nossa identidade e, como caminho para assumir o nosso ser, escutar a bênção de Deus sobre cada um de nós, “do Deus que chama à existência e constata que aquilo que surgiu do Seu chamado “era muito bom”, porque “o Bem se doou a ele e veio habitá-lo”.
Santa Teresa de Ávila impregnou-se dessa experiência a partir da vida que decorre da oração.
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE - Professora e cronista. Coordenadora diocesana da Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena/ Magdala. Jundiaí, Brasil.
Terça-feira, 28 de Outubro de 2014
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - SOBRE A ILUSÃO (AUTO)BIOGRÁFICA
Sobre o verdadeiro alcance a as limitações das biografias, Pierre Bourdieu escreveu um texto que se tornou clássico, intitulado “A ilusão biográfica”. Quanto a autobiografias e livros de memórias, por mais sinceros e completos que procurem ser, sempre terão algo de suspeito. Eles exprimem com veracidade os indivíduos que os escreveram, ou exprimem, mais bem, a imagem que esses indivíduos formaram de si e que pode não corresponder à realidade, mesmo admitindo que eles sejam absolutamente sinceros e honestos na seleção e exposição das suas reminiscências?
Pessoas que escrevem memórias com a intenção de deixar um monumento de suas vidas – seja por razões políticas, seja por razões familiares, seja por sentirem tão-somente a necessidade de extravasarem os sentimentos e deixarem consignadas, por escrito, suas experiências pessoais – até que ponto tais pessoas não exprimem, nas memórias, uma imagem auto-idealizada, que desejam fixar no papel e deixar para os pósteros?
Até que ponto uma “biografia-autorizada”, como tantos políticos, artistas e empresários hoje em dia gostam de patrocinar, é biografia no sentido pleno e corrente do termo? Não será ela uma ficção, uma projeção mais consciente ou menos, do personagem que a autoriza?
Em última análise, todas essas questões se relacionam com o problema da memória. O mecanismo da memória, no espírito humano, é sinuoso, é muitas vezes inexplicado e inexplicável para a própria pessoa que procura recordar seu passado. É um exercício que mexe muito a fundo com as paixões, com as emoções. Normalmente, nós nos lembramos bem daquilo que despertou em nós uma paixão muito profunda, favorável ou desfavorável. É difícil esquecer algo que nos agradou profundamente, como também não é fácil esquecer algo que nos magoou, que nos feriu, que nos fez sofrer muito.
Esquecemos facilmente, isso sim, as coisas indiferentes. As coisas que não nos marcaram emocionalmente vão sendo varridas da memória e lançadas à vala comum do esquecimento. Dir-se-ia – para recordar a velha e querida Antiguidade clássica – que todos nós tomamos, a respeito das coisas indiferentes, aquela água misteriosa do rio Lethes, o rio que separava o mundo presente do inferno mitológico. As almas dos mortos atravessavam esse rio, na barca de Caronte, e sentiam muita sede. Bebiam, então, para se aliviar, a água do próprio rio, e com isso se esqueciam do seu passado. Os mortos que bebiam água do Lethes ficavam, de acordo com a mitologia grega, vazios, seres sem memória. Seriam como HDs de nossos modernos computadores, que tivessem todo o seu conteúdo deletado e fossem, ademais, reformatados... Tornavam-se aptos a, pela metempsicose, reencarnarem em animais.
Pois bem, nossas vidas são cheias de fatos maiores ou menores que esquecemos... porque nos foram indiferentes. As águas seletivas do imaginário Lethes as varreram. Para nós, individual e subjetivamente, é como se nunca tivessem existido, é como se não fizessem parte da verdade.
Verdade... Essa é uma palavra que usamos a todo momento. Mas, que significa ela? “Quid est veritas?” Que é a verdade? Foi essa a pergunta que Pilatos fez a Jesus Cristo (Jo 18,38). Para os cristãos, Deus é a Verdade, Jesus Cristo é a Verdade. “Ego sum via, veritas et vita” – Eu sou o caminho, a verdade e a vida (Jo, 14,6).
Para os gregos antigos, verdade era outra coisa. Em grego, verdade era aletheia, ou seja, não-esquecimento, era o que não tinha sido apagado pela água do Lethes.
No trabalho de seleção subconsciente do que deve e não deve ser lembrado, do que deve e não deve ser esquecido, cada um de nós é senhor de si, sem dúvida, mas somente até certo ponto. Se fôssemos senhores absolutos da nossa seleção, jamais esqueceríamos algo que nos interessasse, todos os estudantes tirariam nota 10 em todas as provas e exames... E, bem ainda maior, conseguiríamos esquecer completamente fatos que nos traumatizaram, nos feriram, nos magoaram. Só lembraríamos das coisas boas, agradáveis e úteis, sem nos preocuparmos com más recordações, com as que nos fazem sofrer e condicionam nossa felicidade.
A realidade concreta é que cada um de nós se lembra de muita coisa boa e, também, de coisas menos boas, que sinceramente, no mais íntimo de nosso ser, preferiríamos esquecer. A seleção do que ficou, nós mesmos fazemos, ao longo da vida, no plano consciente e, mais ainda, no subconsciente.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
CINTHYA NUNES VIEIRA DA SILVA - BISCOITANDO
Embora o significado de biscoitar seja incomodar, ousarei construir um novo, mais adequado e menos inoportuno, que é o ato de fazer biscoitos. É fato que nunca uma pessoa especialmente habilidosa na cozinha. Minhas primeiras investidas em “comidas de verdade” resultaram em berinjelas assadas que eram tudo menos assadas, arroz empapado, feijão duro e outras “iguarias” do mesmo patamar.
Quando criança, contudo, aprendi a fazer um doce de coco e, como era fácil e ficou bom, passei longas temporadas empanturrando todo mundo a quem eu podia oferecer um docinho, gostasse a pessoa de coco ou não. Da mesma forma, quando mocinha, eu desenvolvi uma especial habilidade para fazer pão, talvez até uma herança genética, por conta de ter um avô que era padeiro. Fosse como fosse, na faculdade, assei tantos pães quantos pude distribuir e não me cansava de admirá-los enquanto cresciam, ganhavam cor e aromatizavam toda a cozinha.
O tempo passou e eu não me tornei uma cozinheira exemplar, mas hoje consigo fazer uma refeição saborosa, ainda que simples. Gosto dos rituais da cozinha, embora não aqueles diários, mas aqueles nos quais o ato de cozinhar é mais um ato de amor, de delicadeza, de arte, do que a obrigatoriedade de preparar algo para se comer. Gosto de presentar com comida, até porque isso me lembra costumes de meu tempo de infância, como o de receber um pratinho da vizinha com alguma guloseima, por exemplo...
Desse modo, assim que pude, fiz um curso rápido de biscoitos. A partir de uma receita padrão, segui incorporando sabores, essências, formas, cores e acabei transformando “biscoitar” em minha particular conjugação de me divertir. O lúdico sempre me encantou, diga-se de passagem, e criar biscoitos em forma de estrelas, corações, coelhos, ursinhos e afins, tornou a coisa toda bem especial.
Ajudou, ainda, o fato dos biscoitos ficarem bem gostosos, pois a receita que aprendi é boa. Saí distribuindo pacotinhos para amigos, vizinhos e, sobretudo para meus pais, sogra, irmãs e sobrinhos e a melhor recompensa que tenho é ouvir os pequenos pedirem aos pais “biscoitos da tia Cinthya”, devorando-os, tão logo os recebem, com carinhas de quem come algo especial.
“Biscoitar” tem me transformado em uma cozinha de primeira, ainda que para uma plateia de pequenos, mas a melhor plateia que eu poderia ter. Sigo “biscoitando” com alegria de quem prepara um mimo, um abraço, uma lembrança daquelas para se ter para toda vida...
CINTHYA NUNES VIEIRA DA SILVA - Advogada, mestra em Direito, professora universitária e escritora - São Paulo.
RENATA IACOVINO - O GOSTO QUE SE DESCUTE
Alguns dizem que gosto não se discute. Outros que: gosto não se discute, lamenta-se.
Penso que dá para discutir, ou melhor, falar a respeito. O problema é como...
Afinal, é difícil levar uma conversa adiante, sobre bom ou mau gosto, que não envolva nosso juízo de valor. E consequentemente, nosso julgamento.
Porque quando julgo o "mau" gosto de alguém, julgo-o a partir do meu suposto bom gosto. Que é "bom" para mim. E é bom, segundo a minha avaliação, os meus critérios, o meu olhar, a minha vivência, minhas experiências...
E quando condeno o mau gosto do outro em detrimento do meu bom gosto, estou afirmando uma verdade. Uma, dentre milhares existentes por aí, pois cada um tem a sua, não?
Outro problema é quando nos vemos diante de algo que "indiscutivelmente" é de mau gosto... É possível haver algo indiscutivelmente de mau gosto?
Podemos dizer que o senso comum elege o que é aprovado por uma maioria ou não. Agora, até que ponto isso é confiável, vale outra reflexão.
Se partirmos do pressuposto que o senso comum não traz em seu bojo um critério de pensamento, mas sim de absorção de um legado já existente e legitimado, o aspecto crítico é deixado para segundo ou, na pior das hipóteses, para nenhum plano.
E se negamos a possibilidade de criticar, de formular um pensamento acerca de algo... perdemos a oportunidade de transformar.
A transformação e a mudança podem, em linhas gerais, caminhar na via contrária à estagnação. Às vezes não, mas pensemos naquela mudança que nos faz crescer, que nos leva a somar algo até então adormecido nalgum canto obscuro de nosso íntimo.
Buscar entender o diverso pode ser uma das vias para aceitar o gosto do outro, que talvez não seja o meu, mas que possui o mesmo direito de existir.
E esse gosto pode ser estendido, também, a formas de comportamento, a maneiras de se vestir e ao jeito de se expressar.
Muitas vezes julgamos mal nosso interlocutor simplesmente porque não compreendemos o que ele nos disse. Ou, na verdade, não o ouvimos como deveríamos, ou seja, não o ouvimos dentro da intenção que ele quis nos falar, e sim, com o filtro que nossa verdade forjada nos impõe que ouçamos.
Mas esta reflexão é apenas a minha verdade. A verdade mesmo... ainda não inventaram.
RENATA IACOVINO, escritora e cantora / reiacovino.blog.uol.com.br / reval.nafoto.net / reiacovino@uol.com.br
JOSÉ RENATO NALINI - O ASNO DEMOCRÁTICO
A República, de Platão, não era uma Democracia. Segundo sua fábula, o Criador dotara os governantes de uma alma de ouro. Os guerreiros de uma alma de prata. Os trabalhadores de uma alma de bronze. Quem fosse chamado a governar teria de ter atributos excepcionais. Os reis seriam sábios, ou filósofos, quer dizer: amigos da sabedoria.
A Democracia, segundo a ótica platônica, seria irrealizável. Pois baseada numa quimera: a igualdade entre as pessoas. Nada mais desigual do que uma criatura em face da outra. O triunfo da igualdade democrática é objeto de crítica acerba de pensadores como Jacques Rancière, cuja obra “Ódio à Democracia” já foi objeto de comentário anterior.
Depois de mencionar o caos axiológico em que a humanidade se encontra, Rancière chama esta aurora do terceiro milênio de “reino do bazar e de suas mercadorias baralhadas, igualdade entre professor e aluno, demissão da autoridade, culto da juventude, paridade entre homens e mulheres, direitos das minorias, das crianças e dos animais. A longa deploração dos malefícios do individualismo de massa na era dos hipermercados e da telefonia móvel apenas acrescenta acessórios modernos à fábula platônica do indomável asno democrático”.
Ninguém se espante desse amargor. A era da tecnologia, das cidades tentaculares e do mercado global nada tem a ver com os vilarejos gregos onde se inventou a democracia. Esta é uma alternativa política de outra era, que não serve para os nossos dias. Mesmo porque, ela deixa tudo de cabeça para baixo.
Quem se propuser a uma análise serena do quadro democrático chegaria à conclusão que Democracia é um governo anárquico, fundamentado na ausência de qualquer título para governar. O teor da propaganda política, gratuita para o candidato, muito cara para o eleitor, deixa claro o grau de destempero em que a sociedade mergulhou. As mentiras, os ataques, os gastos, a sujeira em que as cidades ficam, a mediocridade, a falta de ética e de estética, tudo parece depor contra a Democracia.
Porém, lembremos de Churchill, a Democracia é o pior dos governos, à exceção de todos os demais. Quem inventará algo melhor para mostrar que a humanidade é racional e que a espiral hegeliana está, de verdade, a nos conduzir para o estágio da perfeição?
JOSÉ RENATO NALINI é presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para o biênio 2014/2015. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br.
FELIPE AQUINO - UMA HISTÓRIA REAL DE PERDÃO E CONVERSÃO
O programa “Fantástico” da Rede Globo, em 13 de abril de 1985, mostrou um caso real e emocionante, que aconteceu em nossa cidade de Lorena-SP, e fui testemunha disso.
Uma senhora chamada Ana Maria, morava no bairro de Santo Antônio. Ela tinha uma padaria e morava no mesmo prédio em um apartamento sobre a padaria.
Numa madrugada, essa Senhora teve a sua casa invadida por um rapaz, e este assassinou, dentro de sua casa, um dos seus filhos, jovem de 18 anos.
Ela não quis vingança contra o assassino e, na própria Missa de corpo presente do filho assassinado, declarou o seu perdão ao criminoso. Foi um momento de emoção e lágrimas!
O rapaz assassino foi preso, julgado e condenado à prisão na Casa de Detenção em São Paulo. Tão logo Dª Ana Maria soube da prisão do assassino, passou a visitá-lo em São Paulo semanalmente. Pegava o ônibus em Lorena, viajava 200 km para falar de Deus ao assassino do seu próprio filho.
Pouco tempo depois esse jovem revelava, sob lágrimas, ante as câmaras da TV Globo, o arrependimento do seu gesto. E lamentava não ter conhecido Jesus Cristo antes de parar na cadeia e ter matado o filho de Da. Ana Maria.
Esse caso mostra o que São Paulo chama de “amontoar carvões em brasa” sobre a cabeça daquele que vive mal, e mostra a forma cristã de vencer o mal. Assim, e só assim, quebra-se a corrente da violência e a atira-se ao chão. Não se pode apagar fogo com gasolina, mas com água. E quando a água luta com o fogo, quem vence é a água.
São Paulo nos ensinou a lei de Cristo: “Abençoai os que vos perseguem, abençoai-os e não os praguejeis… Não pagueis a ninguém o mal com o mal… Não vos vingueis uns aos outros, caríssimos, mas deixai agir a ira de Deus, porque está escrito: A mim a vingança; a mim exercer a justiça, diz o Senhor (Dt 32,35; Rom 12,14-19).
“Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber. Procedendo assim, amontoarás carvões em brasa sobre a sua cabeça.” (Pr 25,21; Rm 12,20).
Jesus ensinou a perdoar os inimigos, e morreu perdoando os que o crucificaram, coroaram de espinhos e o flagelaram até o sangue…
Quem odeia e não perdoa é como alguém que toma veneno e espera que o outro morra.
FELIPE AQUINO - Escritor católico. Prof. Doutor da Universidade de Lorena. Membro da Renovação Carismática Católica.
PAULO ROBERTO LABEGALINI - SENTIMENTOS QUE NÃO PASSAM
Quando servi o Exército em Itajubá – NPOR, 1975 –, eu ainda estava amadurecendo na personalidade que carrego hoje. E quando converso com amigos daquela época, vêm à mente algumas imagens agradáveis e outras recordações um pouco tristes. O importante para mim é concluir que o saldo é positivo a favor de momentos felizes.
Um dia em particular marcou minha vida de aluno a oficial da reserva. No exercício de ‘Fuga e Evasão’, éramos prisioneiros e conseguimos fugir do acampamento inimigo. Apenas nove pessoas resolveram escapar num momento de desatenção dos guardas, e eu estava no grupo.
Fazia frio e chovia muito nas montanhas, contribuindo para o nosso sofrimento, já que vestíamos apenas calção. E partimos em direção à cidade de Maria da Fé, lugar ainda mais frio; mas o que incomodava muito era a fome. Estávamos há 24 horas sem comer e ficamos felizes quando avistamos uma casinha no campo.
Ao nos aproximarmos, uma senhora veio ao nosso encontro e, imediatamente, ouviu o pedido meio incomum do aluno Rennó:
– Dona, a senhora tem um arrozinho com ovo pra gente comer?
A resposta alegrou nossos corações:
– Tenho sim. Já fiz a janta de hoje e vou servir vocês. Esperem um pouco.
Devia ser mais ou menos 10 horas da manhã e, para nossa sorte, até o jantar estava pronto naquele abençoado lar. Imaginamos que era mais prático e econômico fazer a comida de uma só vez, antes do almoço, mas, por nossa causa, aquela senhora teria que cozinhar tudo de novo!
E logo chegaram os nove pratos bem caprichados. Não lembro exatamente o que tinha de comida, mas sei que havia feijão, arroz, tomate e carne de porco. O ovo que o Rennó pediu, não recordo se fazia parte do cardápio. E comemos como padres! Heheheh...
Abastecidos, chegamos a Maria da Fé e as áreas alagadas não nos permitiram continuar. Ficamos abrigados numa oficina mecânica, aguardando a chuva passar. Como o aluno que mais tremia de frio era eu, aceitei vestir um macacão todo sujo de graxa, que me salvou de padecer congelado.
À noite, o pai de um dos fugitivos chegou para nos levar de caminhonete para Itajubá. E após o banho, pedi à senhora da pensão onde eu morava ir comprar um lanche na padaria, pois eu não podia me expor na rua para não ser preso pelos inimigos.
Bem, mas sabe por que estou contando tudo isso? Na verdade, quero me reportar a um sentimento de ingratidão que guardo no coração, porque não me lembro como agradeci – e se agradeci – as pessoas que me ajudaram. ‘Obrigado’ eu acredito ter dito, mas somente isso foi muito pouco! Hoje, não sei se estão vivas, nem mesmo alguns rostos ou lugares que viviam me recordo. Como reparar isso?
Eu rezo pela senhora da casinha no campo, pelo mecânico que me emprestou o macacão, pelo pai do amigo que nos transportou na caminhonete e pela dona da pensão – esta sim, sei que faleceu. Peço a Deus que tenham paz abundante assim na Terra como no Céu, mas ainda carrego um pouco de culpa por não lhes ter retribuído todo o bem que fizeram. Na época, por alguns meses sustentei o desejo de ir a Maria da Fé levar um presente ao mecânico, mas nem o macacão devolvi pessoalmente – seguiu pelo caminhão de leite.
Então, não somente eu, mas também você, leitor, temos que aproveitar todas as oportunidades para retribuir o amor que recebemos. Não podemos deixar os agradecimentos de cada dia para depois, porque novas oportunidades poderão não existir.
Amar como Jesus amou não é fácil, porém, amar como percebemos que somos amados por tanta gente é o mínimo que o mundo espera de nós. Há carinho suficiente emanando dos corações e não temos o direito de segurar isso conosco, sem retribuir. Faça também a sua parte para não se arrepender.
PAULO ROBERTO LABEGALINI - Escritor católico, Professor Doutor da Universidade Federal de Itajubá-MG. Pró-reitor de Cultura e Extensão Universitária da UNIFEI.
HUMBERTO PINHO DA SILVA - OS AFECTOS QUE NÂO DEMOS
Pouco a pouco, lentamente, ano a ano, quase sem sentir, avizinha-se o fim da jornada.
Passamos a vida a cuidar – da nossa saúde, da nossa carreira profissional, da satisfação dos nossos desejos; olvidando que para ser feliz é mister cuidar dos outros.
Adiamos sempre para amanhã – que nunca chega, – para conviver, abraçar o amigo, o familiar, porque não temos tempo…ou por comodismo…
E para amanhã ficam os telefonemas, as conversas, as horas de convívio com aqueles que nos querem bem.
De longe a longe, dizemos-lhes: - Havemos de combinar…mas sabemos que o amanhã nunca chegará…
E deste jeito, quantos abraços deixamos de dar? Quantos elogios ficam por fazer?
Mas, em hora inesperada, chega a doença, surgem as limitações e então cogitamos: por que não disse o que ia na alma?! Por que não abracei meus irmãos e a causa que me era querida?!
Adiamos sempre: Amanhã vou fazer isto. Hei-de dedicar-me à música. Quando aposentar-me vou pintar…Servir uma causa humanitária…Sempre para amanhã…Sempre para o futuro.
Vivemos dentro de um sonho. Só muito tarde acordamos e, estupefacto, verificamos que não vivemos…As oportunidades e a saúde, passaram…e o tempo não volta.
Lamentamos, então, os anos perdidos. A juventude que passou… e o que passou…não passará mais…
Já não vamos a tempo de dizer: quanto amavamos a nossa mãe, a nossa irmã, aqueles que connosco repartiram a vida – os amigos, os colegas de trabalho, os companheiros que cruzaram com a nossa vida.
Então lamentamos, os abraços que não demos. Os beijos que deixamos de dar. Os afectos que tornariam felizes os que aguardavam os nossos carinhos….Mas é tarde…Muito tarde…Porque o tempo é como as águas do rio, nunca passam pelo mesmo lugar.
HUMBERTO PINHO DA SILVA - Porto, Portugal
EUCLIDES CAVACO - JANELA DA VIDA
Desejos duma maravilhosa semana para todos vós.
EUCLIDES CAVACO - Director da Rádio Voz da Amizade , Canadá.
Quarta-feira, 22 de Outubro de 2014
JOÃO CARLOS MARTINELLI - A DEMOCRACIA AUTOLIMITA O PODER DO ESTADO
De acordo com Ban Ki-moon da ONU, pode se dizer que “sistemas democráticos são essenciais para se alcançarem os objetivos de paz, direitos humanos e desenvolvimento no mundo”. Por outro lado, o Estado Democrático de Direito, adotado pelo Brasil, é aquele cujo regime jurídico autolimita o poder do Estado ao cumprimento das leis que a todos subordinam.
Consoante ensinamento do professor e filósofo Leandro Konder (“Democracia, o que é?” - artigo publicado no jornal “Gazeta do Oeste”- Sup. Escola- Natal – R.N. – pág. 09 – 24/07/2002), há cerca de 2.500 anos, existiam algumas maneiras de governar. Numa, a sociedade era comandada por uma só pessoa: o rei ou o monarca. Era a monarquia. Noutra, a sociedade era dirigida por um grupo pequeno de homens ricos. Era a aristocracia. Em algumas cidades da Grécia foi experimentada uma terceira forma de governo, na qual este deveria ser controlado pelo conjunto de homens livres da cidade: os cidadãos. Era a democracia.
Resultado da própria concepção grega, ainda que em não em sua abrangência absoluta, ela pressupõe igualdade, ou seja, as leis devem valer igualmente para todos os cidadãos, impossibilitando-se alguém de obter privilégio diante das mesmas. Assim, revela-se num sinônimo de isonomia, ou seja, todos indistintamente são iguais no exercício das aspirações civis, políticas, econômicas, sociais e culturais. Vale dizer, portanto, que o regime democrático requer o acesso de todos, em idênticas condições, aos direitos fundamentais básicos.
Em termos formais, a democracia é um método de decisão, composto de um conjunto de regras de procedimento para a formação da legislação reinante e escolha dos governantes de uma sociedade. Um processo desta natureza parte de três premissas primordiais: primeira, de que a Lei é igual para todos os cidadãos e de que todos os cidadãos são iguais diante da Lei; segunda, de que o povo é a fonte legítima de poder; e, terceira, de que apenas a soberania popular tem o poder de modificar e criar leis.
De acordo com o saudoso Prof. Plinio Sampaio Jr, tendo como base estes princípios, considera-se “uma sociedade mais ou menos democrática na medida em que seu processo político respeitar, em maior ou menor grau, as seguintes características: a) o poder político – seja ele executivo, legislativo ou judiciário - precisa estar sob controle de pessoas escolhidas pelo povo, através de um processo eleitoral previamente definido pelos cidadãos; b)todo cidadão deve ter liberdade de voto, opinião, expressão e organização política e c)nenhuma decisão tomada pela maioria pode limitar a possibilidade da minoria tornar-se um dia maioria” (“DEMOCRACIA – Forma e Conteúdo”- revista “Família Cristã”- 10/84 – pág. 63).
A democracia assegura livre manifestação dos contrários. O inimigo da liberdade democrática é a ameaça de sua própria destruição. No Estado moderno, soluções gerais que ignoraram tais realidades pouco duraram. A democratização de uma sociedade deve ser vista como um complexo processo de luta social, em que ocorrem avanços e recuos, não se restringindo a uma questão estritamente institucional.
O seu amadurecimento, principalmente no Brasil, requer desenvolvimento cultural e educacional, fortalecimento da cidadania com a inclusão dos excluídos (e.g. reforma agrária, habitação social, saneamento, saúde) e exige um grande esforço de restauração do respeito à lei, com provimento eficiente de justiça e segurança pública. Por isso, constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil no âmbito interno, constitucional e expressamente previstos: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Por outro lado, o Estado Democrático de Direito, adotado por nosso país, é aquele cujo regime jurídico autolimita o poder do Estado ao cumprimento das leis que a todos subordinam. Tal noção corresponde ao estágio civilizatório das democracias “em que o poder das leis está acima das leis do Poder”, conforme apregoava Rui Barbosa. O seu ideal tem como peça chave a supremacia da Constituição e tem por fundamentos: a soberania (poder máximo de que está dotado o Estado para fazer valer suas decisões e autoridade dentro de seu território; a cidadania (qualidade do cidadão caracterizada pelo livre exercício dos direitos e deveres políticos e civis); a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (existência de mais de um partido ou associação disputando o poder político). Em nossa concepção, pode-se dizer ainda que uma Nação realmente é democrática quando observa e garante irrestritamente os direitos humanos.
JOÃO CARLOS JOSÉ MARTINELLI é adovgado, jornalista, escritor e professor universitário (martinelliadv@hotmail.com)
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE - VESTIDA DE CINZA
Contaram-me um fato que me emocionou e passei a carregar no coração. Há alguns anos, no Porto de Salvador, perto do terminal dos viandantes, uma silhueta vestida de vermelho, na madrugada, deixou, em cestinha, daquelas vendidas no Mercado Modelo, uma bebê vestida de cinza. As mãos do entorno, todas recolhidas. Através da brisa vinham canções das boates próximas. Identificou algumas como a de João Mineiro e Marciano: “Você me pede,/ nesta noite em que estamos juntos/ Que eu fique e que faça/ você feliz...” Em seguida de Odair José: “Eu vou tirar você desse lugar/ Eu vou levar você pra ficar comigo...” E Milionário e José Rico: “E a dama da noite que estava comigo/ ambém foi embora/ Fecharam-se as portas, sozinho de novo tive que sair. (...) Qual é o nome daquela mulher, a flor da noite da boate azul?”. Música do tempo em que acreditava que seria possível deixar as ruas próximas dos marinheiros, talvez até com um deles, e seguir outro rumo. Mocinha ainda, mas de alma anciã.
A criança não estava em seus planos, contudo amara intensamente aquele transeunte das ondas, que ficara por um pouco mais de dias. Não houve acenos de adeus e perspectiva de retorno. Conta paga pelo corpo dela. Assunto encerrado. Quando a barriga começou a aparecer, a dona da casa, com frieza, lhe deu como escolha: matar a criança, ainda na barriga, ou se desfazer dela no parto. Abortar jamais. Seguiria repleta de vida até dar à luz. Deixaria a filha para alguém levar. Vestiu-a de cinza como reflexo de sua própria história: da cor do oceano em dias escuros de inverno. Talvez a pequenina tivesse um destino melhor que o seu e não precisasse dos cabarés.
Crescer sem colo é difícil! A falta de aconchego se transforma em desencanto. A menina passou por instituições e lares diversos. Não tentaram compreender que dentro dela havia borrasca e calmaria. Faltaram laços de ternura.
A menina amadureceu em meio a dissabores, tornou-se independente, trabalha e estuda. É comum encontrá-la vestida de azul celeste, que contrasta com seus olhos negros.
Sobre a mãe, dizem que vaga pelas ruas do porto, envolta em farrapos, alcoolizada, à procura de uma cestinha antiga de vime, enquanto sussurra, de forma entrecortada, cantigas de ninar.
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE - É professora e cxronista. Coordenadora diocesana da Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena/ Magdala. Jundiaí, Brasil.
Terça-feira, 21 de Outubro de 2014
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - MONUMENTOS E DOCUMENTOS HISTÓRICOS
Na linguagem popular corrente, utiliza-se a palavra monumento para designar estátuas, lápides, edificações de natureza diversa destinadas a perpetuar a memória de alguém ou de alguma coisa. A noção de monumento, pois, está quase indissociavelmente ligada à ideia de um objeto material intencionalmente feito ou preservado “ad perpetuam rei memoriam” - para a perpétua memória da coisa, como se dizia em latim. Ainda na linguagem corrente do português falado em nossos dias, pode-se usar, por extensão, a palavra monumento para designar alguma obra que, pela sua grandiosidade, mereça ter a memória perpetuada. Assim, pode-se dizer que “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, constituem um verdadeiro monumento da Literatura brasileira.
Etimologicamente, porém, se recuarmos até a forma latina monumentum, o sentido é bem mais amplo. Monumento significa “tudo o que lembra alguém ou alguma coisa, o que perpetua uma recordação, qualquer monumento comemorativo”, mas significa também “monumentos escritos, marca, sinal por onde se pode fazer um reconhecimento, uma identificação” (Machado, José Pedro. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial Confluência/Livros Horizonte, 1967, t. II, p. 604, verbete Monumento).
Na historiografia moderna, geralmente se associam, mas se distinguem os conceitos de monumento e de documento. Jacques Le Goff propôs, em História e Memória (Campinas: Editora Unicamp, 5ª. ed, 2003), essa distinção terminológica e conceitual que, embora não constitua unanimidade e possa, até mesmo, ser objetável, tornou-se corrente entre os historiadores. Para Le Goff, monumento é tudo quanto resta do passado; e documento é o monumento que o historiador seleciona para seu trabalho. Todo documento é, pois, monumento, mas nem todo monumento é documento. São suas palavras:
“A memória coletiva e a sua forma científica, a história, aplicam-se a dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos. De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores. Estes materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador” (op. cit., pp. 525-526).
Para se entender o fundamento da distinção proposta por Le Goff, devemos analisar a etimologia dos dois termos, monumento e documento, considerar que, no passado, os sentidos até certo ponto se confundiam. Documento provém do verbo latino docere, ensinar. Documento é, pois, sinônimo de ensinamento. O ensinamento pode ser escrito, pode ser oral e pode também ser simbólico, sem necessariamente se exprimir em linguagem escrita ou falada. O verdadeiro sentido da palavra documento, pois, vai muito além do significado estrito de documento escrito, como entendiam os historiadores positivistas do século XIX (que supervalorizavam o documento escrito e oficial) e como o linguajar popular corrente consagrou.
A proposta de Le Goff é, de certa forma, voltar ao sentido mais próximo do original dos termos e designar como monumento tudo quanto se herdou do passado, em sentido muito amplo e abrangente. E considerar como documento aquilo que o historiador escolhe para seu trabalho historiográfico, de acordo com sua criteriologia e sua respectiva escala de valores. Le Goff restringe, pois, o sentido da palavra documento. Um escrito do passado que tenha chegado até nós, ainda que perfeitamente preservado, é um monumento e não é, por si mesmo, um documento; somente será documento se for selecionado e utilizado por um historiador. Essa distinção tem algo de arbitrário e, portanto, algo de objetável, mas sem dúvida é muito clara, didática e funcional, adequando-se perfeitamente às necessidades terminológicas dos historiadores. Acabou por se impor.
Acrescento que documentos não são necessariamente materiais. Podem também ser imateriais, quando não se materializam, não se corporificam. Um exemplo, entre muitos outros: a existência comprovada, entre os índios brasileiros, de uma versão do mito do dilúvio universal, com Tamandaré (o “Noé” dos Tupi), é algo imaterial. Mas pode ser selecionado como documento, por um historiador que relacione esse mito com mitos análogos provenientes de outras partes do mundo, com relatos bíblicos, com fontes mesopotâmicas (como a saga de Gilgamesh) etc., com vistas a sustentar uma eventual tese sobre a remota origem dos índios brasileiros.
Por fim, nem sempre os documentos são voluntários. Há também documentos involuntários. Alguém pode querer deixar sua marca na história, perenizando uma lembrança. É o caso, por exemplo, de um homem primitivo que tenha pintado, na parede de uma caverna, uma cena de caça ou de luta. Esse mesmo homem pode, também, deixar involuntariamente sua marca na história, se abandonar restos de comida ou um vaso de barro quebrado. Esse “lixo” pré-histórico, analisado com cuidado, revela uma imensidade de coisas acerca da vida de nossos ancestrais. É tipicamente um documento involuntário.
Mesmo documentos escritos podem, contrario sensu, revelar involuntariamente o que não foi intencionalmente escrito. Certas omissões intencionais são muito reveladoras. Le Goff se estende, na obra citada, sobre os cuidados que o historiador deve tomar para não se limitar à letra do texto em si, exclusivamente, como propunham os positivistas, mas saber ir além do texto, inserindo-o num contexto, problematizando-o, interrogando o que nele não está dito e questionando o que nele está dito. Tudo isso constitui tarefa dos historiadores. É o que torna delicioso o nosso ofício.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.