Morte, “a morada na qual se entra sem levar nada deste mundo, exceto o que se traz no coração” (Frei Beto)
Princípios como igualdade, fraternidade e liberdade dão lugar ao individualismo de uma cultura de sensações em que o ser humano perde sua identidade e na qual a morte está sendo abolida de nossas vidas. Ao aproximarmos do Dia de Finados, lembrando de nossa transitoriedade neste mundo, procuremos resgatar os verdadeiros valores do humanismo, evitando vulgarizar a morte, pois a sua banalização impossibilita que nos confrontemos com o limite de nossa permanência na Terra.
“Ando um pouco de banda/ é que carrego meus mortos comigo” (Carlos Drummond de Andrade). Terça feira é comemorado o Dia de Todos os Santos e quarta, Finados. Essa segunda celebração, como ressaltou o grande poeta, deveria motivar uma natural reverência aos entes queridos já ingressados no reino onde se findam todos os mistérios. Ela também pode despertar à reflexão sobre a nossa transitoriedade neste mundo – pensamento muitas vezes desagradável e que preferimos deixar de lado. No entanto, a grande verdade é que a morte faz parte da vida. Segundo o biólogo José Mariano Amabis, do Departamento de Biologia do Instituto de Biociências das Universidades de São Paulo, “a morte é uma das maiores invenções que ocorreram no Universo. Sem ela, não teríamos vida. Esse é o princípio básico. Todos os seres vivos, para se manter, para, evoluir, para se modificar, precisam morrer. Os indivíduos morrem, mas a vida continua”.
Na atualidade, o que se observa infelizmente, é uma manifesta tendência de sua vulgarização e de inversão de padrões e preceitos, predominando um clima de indiferença e de relações individuais, onde os sujeitos passam a tratar os próximos como objetos. A máxima “rei morto, rei posto” vem se acentuado a cada dia e a preocupação básica das pessoas se volta exclusivamente aos interesses de ordem política, social ou financeira. Ignoram quase que totalmente a questão da efemeridade – um descaso injustificável, já que ela é absolutamente certa, embora insistamos em nos despistar dessa certeza. A solidez dessa concepção foi captada pelo consagrado poeta Jorge Luís Borges: “Há um verso de Verlaine, que nunca voltarei a recordar./ Há uma rua, próxima, que está vedada aos meus passos./ Há um espelho, que refletiu minha imagem pela última vez./ Há uma porta, que fechei até o fim do mundo./ Entre os livros de minha biblioteca (eu os vejo)./ Há alguns, que jamais abrirei de novo;/ Neste verão farei cinqüenta anos/ A morte me desgasta incessante...”.
Em entrevista ao jornal “O Globo”, o psicanalista carioca Jurandir Freire Costa, professor de Medicina Social da UERJ, afirmou que “os ideais democráticos da Revolução Francesa, que defendiam os conceitos de liberdade, fraternidade e igualdade, ideais que uniam o coletivo, estão sendo varridos para dar lugar ao individualismo de uma cultura de sensações, na qual a morte está sendo abolida de nossas vidas” (Cad. B – pág. 1 – 24/1/99). E prossegue o médico: “Se de fato existe uma ocultação da morte enquanto limite do eu, da consciência, compensamos isso por aquilo que pode ser chamado de banalização da morte. Ela é apresentada e velada, exposta e oculta”. Ou seja, somos expostos à morte todos os dias das formas drásticas, mais violentas, através da mídia e de nossos entorno, mas ao mesmo tempo, esse processo de banalização permite que não nos confrontemos com o limite de nossa permanência na Terra. A morte é sempre a dos outros, ela fica longe da nossa realidade, nos bastidores. Isso tudo, segundo Jurandir, é resultado do “domínio e predomínio” do econômico e material em nossas vidas, em detrimento dos valores éticos, morais e espirituais.
Precisamos constantemente rever as posições assumidas diante do período de convivência terrestre e resgatar a ameaçada estrutura humanista. A efetivação deste último objetivo inclui a busca do bem comum, no pleno respeito à dignidade humana e na garantia dos direitos que daí decorre. A morte realmente é uma circunstância normal do ciclo da vida, que não devemos temer, ao contrário, necessitamos acolhê-la com serenidade, requerendo-se para tanto, empenho no progresso de conversão pessoal e no testemunho de realizações fraternas e solidárias. E não adianta recusarmos a sua ocorrência, nem tentar desmistificá-la, pois a nossa passagem por este planeta é breve e exata. Nessa trilha e a título de meditação, transcrevemos aqui novamente, um texto do escritor Frei Beto: “A vida é o dom maior de Deus. Ninguém escolhe quando, onde e como fazer. É a loteria biológica. Injusto é uns nascerem em condições dignas de viver e outros, não. E isso não é culpa de Deus. É o resultado de nosso apego, de nossa ganância e, sobretudo, de nossa falta de memória de que dentro de poucos anos, seremos também lembrados no Dia dos Mortos – que habitam a morada na qual se entra sem levar nada deste mundo, exceto o que se traz no coração” (O Estado de São Paulo – 1/11/95 – pág. 2).
(Extraído do livro “O Estado e o Cidadão, Um exercício da cidadania” de João Carlos José Martinelli e Alexandre Barros Castro – Ed. Litearte- 2002- ps. 176/178)
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