PAZ - Blogue luso-brasileiro
Terça-feira, 2 de Fevereiro de 2010
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE - PONTOS LASTIMOSOS

 

                   

 

 

A moça percebeu que se apagara, pelo menos momentaneamente, a chama de vela que a protegia dos medos maiores. Pensa nele o tempo todo. Recorda-se de como se encontraram pelas ruas tão próximas ao mar. Cidade estranha para ela. Em suas lembranças, as ondas, de início, eram sempre plúmbeas.

Chegara naquela localidade em fuga de si mesma. Desejava esquecer a dor do abandono. O valor, que sua bolsa continha, possibilitava dirigir-se à cidade praiana. Não provara as águas salgadas. Quem sabe elas pudessem, apesar do áspero do sal, curar feridas.

Durante a viagem, observava as paisagens da serra através da neblina e segurava a barriga como se o menino, que trazia consigo, estivesse em seu colo. Embalava-o com cuidado e melancolia. Era pequenino e precisava de seu amparo. O pai desaparecera, deixando-a sozinha no “mocó”, ao saber que carregava um filho dele. Ela o buscou pelos albergues da cidade grande, pelos becos e praças escuras, até que lhe contaram que o viram seguir apressadamente, por um atalho, em direção à madrugada de trevas.

Ao desembarcar, na cidade desconhecida, misturada ao cheiro acre de peixe acumulado nas fendas dos barcos, a primeira impressão foi de amargura. Seguiu a esmo e, de repente, encontrou um grupo, sem identidade, assim como se considerava, debaixo de uma marquise, com olhos no nada. Juntou-se a eles e o moço, que acendera uma vela pequenina, fez-se dela e ela dele. Foi de mãos dadas com ele que descobriu que o mar é cheio de encantos e as ondas podem ser azuis. Foi ele que lhe ensinou a recolher conchinhas brancas e a encontrar, no céu, quando a noite sufoca e amedronta, a sua estrela.

Pelo convívio, o nenê acertou o pulsar de seu sangue com o do moço que protegia a mãe e ele, emocionado, registrou-o como filho seu. Uma das tias, de residência fixa, ofereceu-se para criá-lo durante o período em que se submeteriam a tratamento. O dois, de passos vacilantes pelo álcool, pela droga e pelos desencontros, aceitaram e partiram ao encontro de algo que os detivesse e surpreendesse.

E foram assim adiando a cura para seus males, com medo de separação. Uma clínica os afastaria por um tempo. O vão dos viadutos os unia. Tratar-se na rua era impossível: a fumaça ou o cheiro da droga quebrava as poucas resistências que acumulavam nas manhãs de sonhos renovados. O tremor que tomava conta dele sem aguardente, tornando visível a dependência, empurrava-o para o próximo gole. A depressão que ela sentia, sem a substância entorpecente, fazia com que buscasse o narcótico. Difícil, também, para se libertar, a realidade do grupo do qual eram parte. Transferiram para outra data. Protelaram.

Um do grupo, egresso recente da penitenciária, no desejo incontrolável do crack, praticou um assalto. A vítima, apavorada, viu dele apenas a vermelho da camiseta, da mesma cor da que usava o companheiro da moça. O que assaltou foi em busca da droga e a polícia, quando veio com a vítima, pelo tom da roupa, levou o companheiro dela.

O egresso não quis se entregar. Poderia fazer uns “corres”, aqui fora, para o que responderia inocentemente pelo delito.  A moça engoliu a dor da injustiça e da separação. Imaginava que, dentre o seu grupo de personagens da rua, havia solidariedade.

Atualmente, acompanha, como pode, o companheiro na cadeia. Alegra-se por vê-lo nas horas da visita e chora em todas as outras diante da incerteza da condenação e do tempo da distância no cotidiano. Padeceu demais, um dia desses, quando aquele, que empurrou o seu companheiro à cadeia, trocou os brinquedos, que conseguira para o filho, por uma pedra que alucina.

Os “pontos cardeais” dela são: desistir da vida e afastar do amado, denunciar o culpado e correr o risco de morrer no cimento, controlar-se a ponto de ranger os dentes na convivência com o autor do roubo ou recuperar a sua estrela, que o moço da chama de vela lhe mostrou, um dia, à beira do mar. Decidiu por uma estrela cadente, que ilumina e leva para outro lugar. Aguardará o amado para prosseguirem juntos.

 

 

MARIA CRISTINA CASTILHO DA ANDRADE- É coordenadora diocesana da Pastoral da Mulher e autora de “Nos Varais do Mundo/ Submundo” –Edições Loyola

 



publicado por Luso-brasileiro às 11:52
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