Parte do povo vive em situação de pobreza. Parece-me que a pobreza é tanta, ainda na infância, que, anos mais tarde, a pessoa não consegue reagir e se entrega a uma dependência resignada em nada ter. Talvez seja o constatar que, por seus limites de formação educacional ou técnica, por seu endereço, pelos fantasmas das dependências químicas e do ilícito que a cercam, a chance de se elevar não chega ao primeiro degrau de uma escada que ultrapassa fronteiras. Existe, também, um amortecer interno que amarra os passos. E romper as barreiras da sociedade do lucro, onde raros são sensíveis à fome, ao frio, ao desamparo, à ignorância, ao direito de acesso às necessidades básicas, não é fácil. Romper barreiras, sem vagas de oportunidade, estanca a respiração.
Comovo-me com os despossuídos, principalmente com aquelas e aqueles que carregam olhos fortes de anseio por algo que lhes falta, sem abrir mão da meiguice; sem se entregar aos desatinos. Numa tarde apenas, de chuva e frio, deparei-me com vidas sem recursos materiais, mas de doçura na face. Uma estava preocupada, porque o filho, de oito anos, quebrara a única cópia da chave na porta de entrada da casa. Vivem com os pais dela. E como fariam no retorno do menino da escola, se não houvesse ninguém lá? Os três reais para nova cópia de chave seria possível no final do mês, ao receber o pagamento da firma onde trabalha na faxina. A outra comentou sobre a noite anterior. São em quatro: ela, o marido e dois filhos. Possuem apenas dois cobertores ralos que usam para os meninos. Não foram suficientes. Encolhidos, enregelados, tremiam. Resolveram a situação estendendo, entre o lençol e a coberta, algumas roupas. Um pouco depois, questionei a moça de sandália de dedo, que acabara de chegar, se a baixa temperatura e as águas da chuva não lhe fariam mal. Melhor seria estar com um calçado que protegesse os pés. Respondeu-me que dispunha de dois pares, o chinelo que usava no cotidiano e uma sandália, com salto, para ir à cidade. Se colocasse meia, o pé não se adaptaria ao chinelo. Ao final da tarde, aconselhei ao menino de sete anos, de calça e camiseta curtas, que tomasse um banho quente para espantar a friagem. Seria possível no dia seguinte. Onde mora não há banheiro. A vizinha permite o banho das 05h00 às 9h00, antes de sair para o trabalho. Retorna por volta das 23h00.
Envergonhei-me: do cuidado em adquirir chaveiros bonitos para as minhas chaves; do mau humor ao levantar à noite, quando o frio cresce, com o propósito de pegar mais uma coberta; de reclamar comigo se os sapatos que tenho não combinam com a roupa que irei usar; dos resmungos quando a água do chuveiro não esquenta na proporção da atmosfera fria. Como me falta, pela caridade, abrir mão do excedente e ficar com o essencial. Não se expuseram com tom de fracasso, não me pediram nada, não murmuraram. Procurei, contudo, resolver de imediato algumas circunstâncias e propor, a cada um, caminhos de superação com vitórias pessoais.
No dia seguinte, uma menina de sete anos me mostrou o cartão que confeccionara para a mãe. Na cartolina rosa, havia corações por ela desenhados e as figuras da mãe, dela e a do irmão de oito com uma coroa na cabeça. Ele cuida dela. Ajuda nos deveres, vão juntos à escola, insiste que ela pegue o agasalho, aponta os lápis... Interfere para que ela não sofra. O irmão ajuda a varrer a casa, arrumar a cozinha... É o seu reizinho. Quem é rei de verdade, defende das assombrações e merece fé.
Concluo que se todas as crianças se fizerem e forem vistas como nobres e assim de fato tratadas na família, na escola, no bairro, na cidade, com chances semelhantes, em um futuro muito próximo, a miséria será um termo arcaico e meninas e meninos, homens e mulheres habitarão e reinarão no mundo com a dignidade que Deus sonhou e sonha para todas as suas criaturas.
Maria Cristina Castilho de Andrade
Coordenadora da Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena/ Magdala, Jundiaí
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