Encorajou-se na partilha sobre o que passara ao me encontrar sozinha. Havia em seu peito amargura cinza-esverdeada. Era preciso exorcizá-la, em parte, através de palavras.
Acontecera há poucas semanas. Os netos e as poucas coisas foram colocados na viela. A noite chegou logo e trouxe chuva. Os utensílios domésticos, os colchões e os netos se encontram danificados. Os primeiros pela força das águas. Os últimos pela experiência forte de exclusão. A caixa com vestuários e objetos novos, entregues a ela para comercializar como emprego, alguém levou. Ela não estava. Saíra fazia pouco, levando a filha, em dores de parto, para a maternidade.
Tudo muito rápido. Veio para o Estado de São Paulo porque, em sua terra no Norte, diziam que aqui era fácil de conseguir emprego, comprar uma casinha e sobreviver com dignidade. Acreditou. Quem partia, raramente retornava. Na roça, ouvia sobre casas com suíte, escola boa, nortistas que se transformavam em doutores. Juntou o que possuía em trouxas, de acordo com a compleição física de cada filho, e se deslocou rumo ao desconhecido. Era preciso arriscar.
Na cidade, na qual moravam vizinhos antigos, fixou residência. Ajeitou-se em barraco da periferia. Alguns dos filhos se arrumaram. Outros, ao vagar pelos meandros das habitações em decadência, tropeçaram em disfarces de alegria. O álcool chegou primeiro. A pedra abriu espaço para desencontros diversos. Despediram-se em viagem para conviver com desconhecidos que tinham um ponto em comum: a miséria material que desvia e empobrece: o caráter, a convicção, o discernimento, a firmeza para reagir.
Cansada de, na distância, preparar curativos ineficazes para os filhos sinuosos, decidiu se tornar presença. Talvez os salvasse. Alugou, nas bordas da proximidade com a metrópole, uma construção de três cômodos e abrigou os oito, na soma de netos e filhos. O responsável pela construção informou que a proposta era a venda do local. Mais seguro para ele comercializar, de imediato, as “residências” diminutas da área invadida, com paredes sem orientação de técnicos. Se mandarem demolir, o problema não é mais dele. Originário, como ela, de outras plagas do Brasil da seca, retirante, migrante, assimilou, com fatos obscuros – sinal dos tempos -, que poupança se faz com o ilícito e para isso é necessário esterilizar os sentimentos bons, o respeito ao próximo, a caridade. Ela tentou conseguir o valor através da venda de um terreninho onde nasceu. Não conseguiu de imediato. Solicitou a ele mais um tempo de aluguel. O “proprietário” se calou. Talvez tivesse realmente planejado, ao ver a gravidez da filha, a ação de despejo, sem lei e sem defesa. As crianças não reagiriam.
Alguns vizinhos tentaram cobrir as suas poucas coisas com plástico, porém não adiantou. Chamaram as crianças para dentro. Elas preferiram ficar, sob a chuva, sentadas no sofá de cobertura rasgada. Horas depois, no retorno da avó, sugeriram que chamasse a polícia. Uma pessoa desaconselhou. Poderia assoprar a fumaça consumida nas madrugadas. Propuseram justiça com a própria mão. A avó não quis. É de coração manso e humilde. Silenciou a sua dor e revolta e, sem trouxas, caminhou cm os netos pela escuridão, enquanto rezava para que a filha, que ficara na maternidade, tivesse uma boa hora.
Há situações em que não sei o que falar. Observo a dor da pessoa, através de seus olhos, e converso com o Céu. Ela quebrou o silêncio e me disse: “Sinal dos tempos. As pessoas se esqueceram de Deus”. Encontrou a sua justificativa para quem a feriu profundamente e é nela que acende sua fé, sua esperança, sua paz. Ela não se esqueceu de Deus e Ele, por certo, cuidará dela e de seu mundo.
Maria Cristina Castilho de Andrade
Coordenadora Diocesana da Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena/ Magdala, Jundiaí, Brasil
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