De certa vez um rapazinho de nove ou dez anos foi dar um passeio com uma sua tia, em visita a uma amiga desta. À despedida, foram a um café, onde havia vários jornais e revistas para os clientes se distraírem.
As mulheres ficaram sempre a conversar, mas o rapaz pegou numa das revistas e pôs-se a ler. A certa altura a que não era tia, perguntou-lhe afavelmente:
- Então, Ruizinho, que é que se diz nessa revista?
- Diz que você é uma ignorante – respondeu o rapaz.
Na verdade, ele sabia que aquela mulher, amiga da tia, era analfabeta, tal como eu, mais tarde vim a saber, a sua tia o era. A mulher sorriu embaraçada, disse algumas palavras incomodadas a disfarçar. O rapaz continuou a ler, as mulheres continuaram a conversar, e o incidente ficou por ali.
Eu era quatro ou cinco anos mais velho que o rapaz, e, embora agora pense que, por timidez e princípios, não era capaz de dar uma resposta daquelas, quando ouvi aquela frase, de característica tão sentenciosa, até a achei brilhante e apropriada. Depois, falando nisso por acaso ao dono do café, meu vizinho, ele também achou que o rapaz tinha tido um protagonismo e sabedoria de adulto. Foram precisos muitos anos para eu concluir que eu e o meu amigo e vizinho, estávamos vergonhosamente em erro.
O rapaz já não se considerava ignorante, pelo simples facto de saber ler, mas ainda não sabia que para não se ser verdadeiramente ignorante, é preciso saber que não se deve chamar ignorante a quem o é, principalmente ele, um imberbe, a uma mulher que podia ser sua mãe, e no assunto de ignorância não era nada inferior à sua tia. Quanto a mim, essa sua tia foi a mais ignorante, pois não teve a sabedoria de, ali mesmo e na hora, lhe dar uma reprimenda pelo dito, a mostrar-lhe que, acima de tudo, foi uma falta de educação.
Paradoxalmente, a menos ignorante de todos foi a mulher a quem o Ruizinho chamou ignorante, pelo simples facto de não ter ripostado com azedume, limitando-se a disfarçar com umas palavras, em tom alegre e jocosamente. Eu e o meu vizinho, também fomos ignorantes, por não sabermos que não ser ignorante não é só saber ler e escrever bem, e ter outras sabedorias aprendidas na escola; é também ser educado e delicado, para não ofender ninguém, especialmente nas dificuldades e incapacidades que ele possa ter. Chamar “cegueta” a quem não usa óculos e parece ver bem, não é grande ofensa; chamar “cegueta” a quem a quem é fortemente míope, é ofensa que o magoa mais que a sua miopia e mais do que se lhe chamassem ignorante.
LAURENTINO SABROSA - Senhora da Hora, Portugal.
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