PAZ - Blogue luso-brasileiro
Quinta-feira, 23 de Maio de 2013
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE - CANÇÂO DE ALMA INDÍGENA

 

 

 

 

 

 

 

Observo-a adquirindo contornos e emoções de menina-moça. Vem-me a  impressão que tive ao notá-la na graciosidade dos seus quase quatro anos. O olhar dela, silente e profundo, me perscrutava. Desejava decifrar quem seria a estranha que conversava com os que lhe eram próximos. Naquela época, embora se envolvesse com folhas em branco, lápis de cor e bonecas, sabia também de dores, como as da oscilação da mãe entre presenças e ausências e as de ter pouso uma hora aqui e outra ali.

 

Encantam-me a firmeza de seus passos e a doçura de seus sussurros, que trazem, para protegê-la, a alma da aldeia de seus ancestrais. Menina indígena, decidida, no compasso da “Canção do Tamoio” de Gonçalves Dias: “Um dia vivemos!/ O homem que é forte/ Não teme a morte;/ Só teme fugir...”

 

Quantas fugas ela já presenciou. A mãe imaginava que o pai dessa filha se transformaria em um porto seguro para seus naufrágios. Mas como a noite se agigantava  nos seus atalhos e o farol dos nevoeiros estava apagado, para superar as convulsões do oco e dos desencontros, partilhou a droga e a elegeu, em seus desvarios, como ancoradouro. A menina passou a entender que a mãe, sem rumo certo, aspirava algo que trazia afastamento. Quando a queria, ela não se achava. Ao se aproximar, nos momentos de lucidez, a pequena compreendia que era apenas por instantes. Tempos depois, o irmão mais velho, na impossibilidade de voltar ao útero materno, cujo desejo sinalizava ao ficar, em qualquer canto, de cócoras e encolhido, retirou-se de sua realidade através da fumaça. Em seguida, o irmão mais novo, que tentou se considerar homem feito pelo uso de entorpecentes e pelo exercício do poder que cobra com sangue. Há meses, os três – a mãe e os meninos - se encontram em caminho de fortalecimento para reaver a liberdade de ser, com suas dores e tragédias, com suas conquistas e vitórias.

 

Quantos temores assustaram a menina. O de que o pai, ao se mudar para cidade distante, a esquecesse. Da morte da mãe pelas dívidas. De que os embaraços dos irmãos fizessem ruir por completo a família.

 

Quantas amarguras estrangularam os seus sentimentos frágeis e que ela não conseguia mais tratar com desenhos coloridos e bonecas, ao enfrentar, na rua e na escola, por parte de gente miúda como ela, preconceito pela visibilidade da mãe nas entranhas do submundo.

 

Não se entregou e, em momento algum, aderiu às complicações do  entorno. Habita nela a “Canção do Tamoio”: “O forte, o cobarde/ Seus feitos inveja/ De o ver na peleja/ Garboso e feroz. (...) Sê bravo, sê forte!/ (...) Meus brios reveste;/ Tamoio nasceste,/ Valente serás./ Sê duro guerreiro”.

 

No início de maio, me fez portadora de uma carta de agradecimento a uma pessoa que considera madrinha à distância. Contou-lhe sobre a escola e os demais cursos que faz, instalados no bairro onde reside. Seu anseio é conseguir, também,  um curso de inglês. Comentou sobre sua revolta com o lucro da criminalidade. Enalteceu o salário, mesmo que pouco, dos trabalhadores honestos. Escreveu sobre seu sonho de que a paz vença a violência e de que, ao crescer, integre uma geração boa e honesta. Citou Martin Luther King, a respeito de quem fez, a pedido da escola, uma redação, destacando: “Eu digo a vocês, meus amigos, embora enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã, eu ainda tenho um sonho. (...) Eu tenho um sonho de que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença – nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais”. Pesquisou, por iniciativa própria, a influência dos pais sobre os filhos, porém acredita que é possível superá-la, quando negativa, e é o que faz, afastando-se dos fantasmas que a rondam e seguindo sua vida, conforme ela afirma, para se tornar uma grande professora de matemática.

 

É menina canção de esperança em alma indígena, que vence o vitimismo e a fatalidade, e ressuscita os versos de Gonçalves Dias: “Penetra na vida: / Pesada ou querida,/ Viver é lutar”.

 

 

 

Maria Cristina Castilho de Andrade

Coord. Diocesana da Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena/ Magdala, Jundiaí, Brasil.

 

 



publicado por Luso-brasileiro às 11:37
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
arquivos

Julho 2024

Maio 2024

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Julho 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

favoritos

JOÃO CARLOS JOSÉ MARTINEL...

pesquisar
 
links