Quando alguém me entrega sua história, além de me comover, me responsabiliza. Peço a Deus pela pessoa e vivencio uma maternidade de cantiga de ninar. Mais do que confiança, de quem me entrega a sua história, é um ato de ternura em busca de acalanto.
Conhecemo-nos há dez anos. Acompanhei alguns acontecimentos de seu cotidiano. Ignorava, contudo, o nó que a emperrava em determinados passos.
Nasceu com o Parque de Diversões em atividade. Um trailer em andanças, pintado de amarelo ouro com cortinas vermelhas, se tornou sua casa. As paisagens, a cada um ou dois meses, mudavam. Ao crescer um pouco, surgiram as perturbações e dentre elas a falta de raiz, que a tornava sem resistência nas tempestades pelas quais os indivíduos passam.
O abuso sexual interrompeu sua infância, ferindo-a física e emocionalmente. Criança desprotegida, amedrontou-se com a lâmina de um punhal, com torturas, com cordas que poderiam puxá-la às profundezas do rio.
Ao falar de um Parque de Diversões, vem-me sempre a música “Sempre o Amor”, do compositor. Antônio Geromel, que já partiu para a Eternidade. Sua esposa, Profa. Anna Apparecida Osti Geromel, a cantou com postura de ressurreição e com a coragem e a poesia que lhe são próprias, no velório, como adeus: “O amor veio sorrindo,/ parecia não mais acabar./ Mas fez da curva de uma estrada/ como as águas que vão pro mar./ O tempo foi se passando,/ como passa a nuvem no ar./ Tão depressa ele veio e se foi,/ como as águas que fogem pro mar./ Quero ver a roda gigante,/ quero de novo brincar,/ voltar ao passado distante, / outra vez de novo amar...”
Para a moça, contudo, o Parque de Diversões com seus brinquedos, maçã do amor, pipoca com groselha, não possui encanto. O Parque de Diversões foi espaço de tragédia, que a transformou, durante anos, em mulher medrosa, angustiada. Fugiu da engrenagem, que divertia o povo, nos primórdios de sua adolescência, através do casamento. Embora na distância, entre o passado e o presente permanecia um biombo. Por cima dele, o passado a espiava e a massacrava, no presente, com culpas que não eram dela. Questionava-se sobre a possibilidade da escolha de seu corpo de menina, por homens adultos, em meio a outras garotas, ser motivada por ela mesma. Isso acontece com todas as crianças e jovenzinhas vítimas de violência sexual infanto-juvenil. O abusador, com sua mente diabólica, é hábil em colocar a vítima como responsável por seus atos animalescos.
Afundada em dúvidas, culpas e conflitos, abriu as portas para a depressão, tropeçando em seu próprio vazio.
Deus, uma profissional da área de psicologia e um local em que exercitou seus incontáveis dons a resgataram do abismo.
Penso em outra canção: “Roda Viva” de Chico Buarque: “Roda mundo, roda gigante,/ Roda moinho, roda pião,/ O tempo rodou num instante/ Nas voltas do meu coração”.
Hoje, as suas palavras de ordem se compõem de: marcas antigas não sangram mais, recomeçar, recuperar o colorido da vida, mudar, superar. Abriu mão do vitimismo e se colocou a serviço dos outros. Reconheceu que somos únicos, com capacidades próprias, e não permite que a tristeza entre, ao abrir o seu interior.
Escrevo sobre ela para mostrar que é realizável um novo caminho, quando a pessoa toma a iniciativa e troca a roda gigante por asas libertas. Escrevo porque, além de lhe querer bem, a aplaudo. Escrevo sobre ela para que o julgamento inclemente, diante de tantas realidades sofridas, dê lugar à misericórdia.
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE - É coordenadora diocesana da Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena/ Magdala. Jundiaí, Brasil.
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