Há dias em que os acontecimentos me iluminam mais e me acariciam. Sábado passado foi assim.
Pela manhã, em meio às compras no supermercado, reencontrei-me com um de meus queridos. Conheci-o como travesti na área central da cidade, numa noite em que conversava com mulheres em situação de vulnerabilidade social. Depois desse primeiro contato, sempre me fez ter notícias dele, tanto dos tombos como da superação. E se superar, após viver inúmeros anos à margem e na dependência química, acontece entre cair e se levantar.
Tenho comigo que, após a vivência de se erguer uma vez, as outras serão cada vez mais fortalecidas. Conosco é assim também, ao desejarmos alterar um sentimento ou reação que não nos faz bem. Ficamos entre o ensaio e o erro, até que nos fortalecemos na virtude. O moço está empregado com carteira assinada e me mostrou, com orgulho, o cartão alimentação, que lhe permite fazer compras, segundo ele, de cabeça erguida.
Relatou-me que, um dia desses, dirigindo-se ao NA, passou por alguns travestis em um dos pontos de prostituição e os observou. Um deles gritou:
“Está olhando o que, veadinho?” Respondeu: “Olhando com pena. O dinheiro que você ganha escorre das mãos. Eu já tive esse dinheiro. E você não tem ideia do quanto é sofrido depois recomeçar sua vida com dignidade”. Acrescentou como as compras, vindas de dinheiro da prostituição, perdem logo o gosto. Ele adquiria perfumes importados e, na segunda vez que usava, não conseguia mais sentir a fragrância. É o vazio, penso, de se permitir ser consumido para depois ter acesso ao consumismo. Mas, na verdade, o consumismo é também o uso da pessoa pela moda, pelo brilho, pelas marcas, pelas propagandas, pela insistência de que o imoral prevaleça sobre as condutas de um caráter elevado.
Em seguida, fui à Igreja São João Batista para me confessar. Na fila, conheci o Sr. João, do São Camilo, de conversa fácil, que fala com olhos de claridade sobre Deus. Gostei demais de conhecê-lo! Contou-me sobre suas reflexões ao povo e que conclui cantando o Salmo 120, que lhe toca a alma: “Para os montes levanto os olhos/ de onde me virá o socorro?/ Meu socorro virá do Senhor,/ criador do céu e da terra. (...) O Senhor te resguardará de todo o mal;/ Ele velará sobre tua alma./ O Senhor guardará os teus passos,/ agora e para todo o sempre”.
Atendeu-me, na Confissão, o Padre Pedro Azzoni, OMV. Quero-lhe muito bem e gosto de me confessar com ele, que acolhe com carinho, é paciente e fala com simplicidade e sabedoria. Fez-me recordar o filme espanhol de 1955, “Marcelino Pão e Vinho”, baseado no livro escrito por José Maria Sánchez Silva. Marcelino - morava com frades, após ser colocado ainda nenê no monastério -, ao encontrar uma enorme e antiga cruz com Jesus Cristo,
apavorado, saiu correndo. Depois, retornou. Com o passar do tempo, familiarizou-se com Jesus na cruz e passou a conversar com Ele.
Exatamente assim: não fugir, mas sim fazer amizade com o Cristo na cruz de cada dia e observar e acolher as pessoas com compaixão e na certeza de que podem reconstruir sua história. E, ainda, levantar os olhos para os montes, pois o socorro vem do Senhor.
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE - É coordenadora diocesana da Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena/ Magdala. Jundiaí, Brasil
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