"Meus dias são sempre como uma véspera de partida. Movimento-me entre as pontas como quem sabe que daqui a pouco já não vai estar presente. As malas estão prontas, as despedidas foram feitas."
Ao me deparar, folheando ao acaso Caio Fernando Abreu, com esse início de frase, lembrei-me de minha rotina. O contexto é outro, mas talvez o tom urbano e urgente de Caio tenha sido o ímã para essa conexão.
Entre São Paulo e Jundiaí vou encontrando alguns caminhos e perdendo outros. Esse vai e vem é o mesmo que nos assola diariamente, mesmo que não tenhamos uma estrada de concreto pela frente.
É curioso como nossa personalidade acaba se fundindo a partir de ambientes diversos e apresentando um resultando uno, que é a cara da somatória dessas vivências díspares.
Alguns amigos me dizem achar muito bom morar em dois lugares. Isso propicia possibilidades de escolha, comodidade, praticidade, algo por aí, segundo falam.
Sem dúvida há o lado positivo e me parece que é o que prevalece, mas administrar nossa própria identidade nessa viagem sem fim é, por vezes, esdrúxulo.
Querer ou precisar de uma coisa que está lá quando se está aqui, ou vice-versa, é algo que não tem muito como resolver. A alternativa é ter tudo em duplicidade, ou melhor, quase tudo, ou ainda, pouca coisa...
Sem dizer nos seres que queremos ao nosso lado quando estão do outro. Meu gato, por exemplo. Não tenho como levá-lo daqui pra lá o tempo todo, até porque em algum momento teria de acomodá-lo no meu local de trabalho... Esdrúxulo.
O pior é quando se perde algum papel, algum documento, alguma roupa... Perdi lá ou aqui? Trabalho em dobro ter que procurar em dois lugares. O jeito é torcer para não se perder coisas.
Em compensação, já tive momentos de glória, achando-as também. Compensador! Compensa a dor de ser metade.
E como me achar nesse vai e vem?
"Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão.(...)", interpelou-me Clarice.
Renata Iacovino, escritora e cantora / reiacovino.blog.uol.com.br / reval.nafoto.net / reiacovino@uol.com.br
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