“Libertas Quae Sera Tamen”, expressão que adorna a bandeira do estado de Minas Gerais, traduzida como “Liberdade ainda que tardia”. O texto em latim, proposto pelos inconfidentes para marcar a bandeira da república, que idealizaram, no final do século XVIII, foi retirado da primeira Écloga de Virgílio e me traz sempre a figura intensa e imensa de Tiradentes, que reverencio por sua coragem em enfrentar os grilhões do poder da época.
“Liberdade ainda que tardia”. Semana da Pátria. Desfile da Independência no bairro. Houve na casa, onde reside a moça, um burburinho diferenciado das filhas. Durante a noite acordavam sobressaltadas pelo medo de perder hora. A escuridão lhes respondia que não chegara ainda o momento de vestirem as roupas com brilho e o calçado que lhes reportava aos sapatinhos de cristal da Cinderela. Na avenida ensolarada nada trouxeram da Gata Borralheira, história dos Irmãos Grimm, cuja personagem principal dormia junto às cinzas com suas dores pelos desagrados dos acontecimentos, até que surgiram os sapatinhos de cristal. A professora de ginástica artística, em cada ritmo, em cada gesto, as desejou com passos nobres pelo asfalto. As fantasias continham encanto e sonho e sinalizavam que é possível com dedicação, dignidade e perseverança, ultrapassar tons desbotados e insalubres da miséria. A mãe, de vida sofrida e coração estrangulado, entrara no compasso da ansiedade de suas meninas e, na véspera, renunciou às substâncias que usava, há anos, para se aguentar. Tinha consciência de que não seria fácil. Abster-se do álcool ou das drogas significa se encontrar com ela mesma em suas angústias, arrependimentos, contradições, questionamentos, dificuldades... O corpo exigia, com violência e tremor, a pedra, a erva, o pó... A vontade atara-se às drogas fazia anos. E quando a vontade se torna escrava, as sequelas são muitas: a pessoa pisoteia a prudência e o equilíbrio, infringe a lei e reage de incontáveis formas negativas para conseguir mascarar a lucidez.
“Liberdade ainda que tardia”. Pelo menos naquela manhã de festa, a mãe se suportou. Compareceu para admirar as filhas vestidas dos mais belos contos infantis. Custosa e obscura era a sobriedade com soluços. Sua pele, opaca pelas substâncias que a comandam, não refletiu a claridade da manhã. Contudo, juntou os cacos de sua existência com o propósito de aplaudir as filhas. Possuem, mãe e filhas, uma cumplicidade e uma ternura que enternecem. Penso ser por isso que as meninas se preocupam em cuidar uma das outras, ao perceberem que a mãe não se encontra bem. Alguém por certo comentará que se fosse amor ela renunciaria aos animais peçonhentos dos subterrâneos pelas meninas. Não é tão simples assim quando os caminhos primeiros acontecem em meio a escombros. E os julgamentos e a descrença dos próximos arrebentam mais os destruídos por sua história.
Para homenagear as filhas, demonstrando o orgulho que sente delas, fez-lhes uma surpresa. Acompanhou pela calçada o desfile, segurando com firmeza uma sacolinha e com olhos de maré cheia. Lágrimas de emoção bonita engravidam de esperança, pois o Espírito de Deus paira sobre a limpidez das águas.
Ao final, deteve-se anônima e em solidão em uma esquina, à espera de suas meninas. Na sacola, uma faquinha e uma laranja um pouco murcha. Era o que possuía em casa. Descascou-a com muito cuidado e repartiu para lhes acalmar a sede.
Comoveu-me tanto! Partilhar delicadeza e afeto é um passo para romper algemas. Senha para a verdadeira independência. Penso que tropeçará, ainda, mais ou menos vezes, porém o seu gesto de carinho intensificou a minha fé de que haverá um tempo em que ela e as filhas, a um mundo que descrê e marginaliza, anunciarão em coro e com voz decidida: “LIBERTAS QUAE SERA TAMEN”.
MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE - É coordenadora diocesana da Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena/ Magdala. Jundiaí, Brasil
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