Durante boa parte do século XIII, reinou na França São Luís IX, que foi objeto de uma volumosa biografia, publicada há cerca de 20 anos, escrita por Jacques Le Goff, historiador francês de grande nomeada, que se insere na chamada “terceira geração dos Annales”.
O reinado de São Luís é, paradoxalmente, o mais documentado e o menos conhecido dos reinados da França medieval. Por quê? Porque o bom rei teve uma iniciativa única na história. Ele mandou emissários percorrerem todas as cidades, vilas e aldeias do seu reino, de casa em casa, conversando com cada um dos moradores, perguntando sobre a administração da justiça, sobre as queixas, as sugestões, as comunicações que desejavam fazer ao rei. Tudo foi escrito e registrado em relatórios que ainda hoje estão perfeitamente preservados, apesar do tempo decorrido, apesar de todas as guerras e revoluções.
É uma documentação volumosíssima, tão volumosa que ninguém até hoje se atreveu a explorá-la por inteiro. Está quase toda em francês arcaico, com letra da época, mas isso não é o que mais dificulta o aproveitamento. Com um pouco de prática e alguns conhecimentos de Paleografia, qualquer medievalista supera essas barreiras. A dificuldade principal vem do volume imenso do material, que ocupa muitos metros cúbicos de espaço. É por isso que se diz que o reinado de São Luís é o menos conhecido. O material está disponível a qualquer pesquisador, nos Archives Nationales de France, mas somente têm aparecido interessados que trabalham por amostragem, nunca nenhuma pessoa, nem mesmo uma equipe de pessoas, foi capaz de absorver toda a imensa massa de informações ali registradas.
A medievalista francesa Régine Pernoud, que estudou em numerosas obras a condição feminina na Idade Média, coligiu nessa documentação numerosos dados que permitem aferir que, no século XIII, a condição da mulher era de muito maior destaque do que se tornaria a partir do século seguinte, quando a mulher passou a ser relegada a um papel secundário na família, no lar e na vida social.
Pernoud, nas pesquisas que efetuou por amostragem, registrou muitos exemplos de mulheres, solteiras ou casadas, que trabalhavam com economia própria, independente de seus pais ou maridos. Encontrou também muitas casas nas quais os emissários do rei eram recebidos pelo casal, mas registravam que tinha sido a mulher, e não o marido, que tinha respondido ao questionário apresentado pelos emissários reais. Estavam ali os dois, marido e mulher, mas era esta, mais dinâmica e extrovertida, quem respondia ao questionário apresentado.
Pernoud registrou o grande número de mulheres que exerciam a profissão de “miresses”, ou seja, médicas. “Miresse” é a forma feminina de “mire”. Quando São Luís partiu para a VII Cruzada, no Egito, em 1248, levou consigo a esposa e os filhos. Seguiu também a “doctoresse Hersent”, a médica oficial do rei e da família real. Pernoud observa que era tão considerável o número de mulheres que exerciam livremente a profissão de médicas, que até existia no francês medieval uma palavra feminina para designá-las, diferentemente de hoje, quando uma única palavra, “medécin”, de forma masculina, designa indistintamente os médicos e as médicas. Foi somente no século XIV que as mulheres passaram a ser excluídas da prática médica, porque foi tornada ilegal tal prática por quem não fosse formado pela Universidade de Paris, que não admitia alunas. A partir daí, mulheres que curassem passaram a ser mal vistas, a ser vistas com suspeição, como bruxas etc.
No livro “Pour en finir avec le Moyen Âge” (Éditions du Seuil, Paris, 1977), Pernoud dedica um capítulo ao tema da condição feminina na Idade Média francesa, no qual mostra, com base documental, no seu dia-a-dia, a mulher tinha, naquele tempo, margem de autonomia muito maior do que algum tempo depois - quando passaram a prevalecer os critérios do Direito Romano, inspirado na Antiguidade Clássica, muito mais patriarcalista e restritivo em relação às mulheres.
Pernoud fala ainda, nessa obra, na documentação primária abundante e pouco explorada, sobre as mulheres que, naquele século XIII, “não eram nem altas damas, nem abadessas, nem sequer monjas, mas eram camponesas ou citadinas, mães de família ou exerciam uma profissão”. Ela está se referindo precisamente aos registros escritos dos agentes enviados pelo rei São Luís IX a todos os lares do seu reino, com a missão de interrogarem, de casa em casa, todos os seus habitantes, para registrarem as queixas e corrigirem os abusos que estivessem sendo praticados. Nessa documentação primária, comenta a autora, é possível encontrar mil pequenos detalhes da vida cotidiana “que mostram homens e mulheres nos menores fatos da sua vida: aqui, é a queixa de uma cabeleireira, ali, a de uma vendedora de sal, acolá, a de uma proprietária de moinho, de uma viúva de agricultor, de uma castelã, de uma mulher de cruzado etc.” (p. 95-96).
“É por documentos como esses - comenta mais adiante a autora - que se pode, peça por peça, reconstituir, à maneira de um mosaico, a história real, que nos aparece, então, muito diferente das canções de gesta e das novelas de cavalaria.” (p. 96).
Esse é um bom exemplo de aplicação dos princípios e da metodologia da História Social, num tema cultural de grande alcance, qual seja, a posição da mulher na sociedade.
A promoção efetiva da mulher, na sociedade medieval cristã, foi também sinalizada por uma substituição simbólica de grande alcance: nos tabuleiros de xadrez, a peça mais poderosa e importante, depois do rei, deixou de ser o vizir, o ministro-chefe dos califas e sultões árabes. Nos tabuleiros de xadrez da Cristandade Medieval, esse papel passou a se ocupado por uma mulher, a Dama, ou a Rainha. E assim permanece, até hoje.
Armando Alexandre dos Santos é historiador e jornalista, diretor da Revista da Academia Piracicabana de Letras.
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