Conhecemo-nos em 1992. Acolhia-nos, na cela onde morava, com alegria. De conversa fácil, atento ao anúncio do Evangelho. No braço, uma única tatuagem, com o nome da amada. Era a sua identidade.
Transferido para o sistema penitenciário em 1994, não soube e nem me lembrava mais dele. São tantos os que se fazem presença em nossas visitas, e que se vão pelo mundo ou pelos corredores cinza e insalubres, que é impossível guardá-los na memória. Coloco-os, contudo, todas as manhãs, com a lembrança da fisionomia ou não, em minhas preces, no coração de Deus, que observa, individualmente, os filhos Seus. Desejo-lhes a experiência do arrependimento e da bondade. Há aqueles que enviam cartas ou acenos, ou nos procuram nas “saidinhas”, e, de certa forma, se tornam mais próximos.
Passaram-se quase dezoito anos e o reencontro na cadeia na semana passada. Recebeu-nos efusivamente. Disse aos demais sobre o tempo em que a Pastoral dava os primeiros passos dentre as grades e, em seguida destacou nomes diversos, naquela época meninos ainda, indicando os que haviam morrido e a causa da morte. Surpreendi-me com o número dos que partiram ainda na juventude ou no início da idade adulta. Poucos em confronto com rivais na criminalidade e em rebeliões, a maioria vitimada por doença lúgubre. Grande parte das enfermidades prisionais decorre dos desequilíbrios – incontáveis vezes, desde a infância, pela desestrutura familiar -, das dependências funestas, do vazio que não se consegue preencher, das feridas provocadas, pelos delitos que sangram em conhecidos e desconhecidos. Tudo isso deteriora a pessoa e a torna vulnerável a doenças contagiosas e à desintegração do corpo.
Contou-me que saíra do sistema presidiário no final do ano passado e, no momento, estava preso por um delito menor. Não se casara e não possuía filhos. As irmãs com os sobrinhos formam a família que o acolhe.
Notei seus braços repletos de tatuagens. Algumas com formas definidas e outras não. O nome da amada não se encontrava mais. No braço esquerdo, distinguia-se a pintura de uma estrela azul. Contou-me que era a estrela de Belém. Encantara-se, em 92 e 93, com a Celebração de dezembro promovida pela Pastoral no presídio e com os brinquedos que levávamos para os detentos oferecerem aos seus filhos. Observava os pacotes coloridos e o sorriso das crianças ao recebê-los. Nos cárceres, por onde passou, encontrava sempre um caminho para conseguir presentes que pudessem ser distribuídos aos filhos dos detentos. Ocupava-se com isso o ano inteiro. Tornou-se conhecido como Papai do Natal pelos filhos que não eram seus. Por certo foi essa atitude para o bem que o salvou da morbidez.
Comovi-me. Compreendera que a Palavra de Deus, que levávamos, poderia ser lamparina nas masmorras de sua história. Não falara sobre a Palavra, mas exercitara o amor em seu olhar além das grades.
MARIA CRISTINA CASTILHO DA ANDRADE- É coordenadora diocesana da Pastoral da Mulher e autora de “Nos Varais do Mundo/ Submundo” –Edições Loyola
OS MEUS LINKS