Era uma pulseira que andava sempre metida no braço, usava-a de dia e de noite. Nunca a tirava, fazia parte de mim. Era uma pulseira vulgar de ouro, como muitas outras as que tinha um berloque lindo formado por um grande, rubi rodeado de brilhantes
Naquele ano ao chegar à Ponte da Barca esperavam-me os afazeres do costume e me deixavam de rastos tentando abrir com grandes chaves as arcas todas empenadas onde se guardavam os cobertores das camas, abrir os armários da roupa que cheiravam a mofo tendo atravessado a humidade espessa dos Invernos do Minho, fazer as camas em todos os quartos, na casa de jantar abrir outros armários, tirar as pratas, os vidros, os cristais, colocar a colecção de garrafas antigas no seu lugar habitual uma cómoda com quinhentos anos de vida. Depois destapar os sofás os “maples”, desenrolar os tapetes, enfeitar as mesas com retratos, “bibelots”, objectos de cobre e de estanho, tocheiros etc.
Só no fim descansava exausta de tanto pôr em ordem, enquanto a Micas se encarregava de limpar o pó, de lavar os vidros e as louças, sempre com a sua alegria acostumada, enquanto eu lhe ia perguntando por um ou por outro da vila. Naquele dia de chegada eram as festas de São Bartolomeu e até à casa, pelas janelas abertas, chegavam os sons das concertinas e dos coros dos ranchos que de todas as aldeias em redor afluíam à Barca.
Não resisti e depois do jantar lá fui para a rua juntar-me a todos os que cantavam ou dançavam. Cantei e dancei toda a noite: viras, chulas, canas-verdes, malhões, sempre mais depressa, braços no ar, passos difíceis, voltas e mais voltas e uma alegria interior que me saia pela garganta... toda a noite nisto e que alegria.
Já em casa ao deitar-me vi que não tinha o rubi da pulseira. E logo perdi a alegria que trazia comigo. No dia seguinte de manhã fui falar com as raparigas que varriam as ruas --- conhecia-as todas --- e pedi-lhes que me ajudassem a procurar uma pedra redonda encarnada,” ajudem que é de estimação...” Pedi, implorei, prometi numa compensação ...
Deviam pensar que era tonta, tanta ralação por uma pedrinha que nunca se encontraria no meu da terra, mas queria lá saber! Elas conheciam-me desde pequena e certamente já tinham opinião formada sobre mim, fosse ela boa ou má. Não era o meu pedido que a ia alterar, certamente.
Eu também procurava de olhos fixos no chão, com um pau que afastava as palhas, a terra, as folhas, o lixo. Corri a vila por todos os sítios onde tinha estado e nada, procurar agulha em palheiro era certamente o que andava a fazer, eu sabia isso, mas não era capaz de desistir e ia rezando a Santo António, de quem sou devota, pensando ao mesmo tempo que o Santo não se deveria interessar por um pedido tão material. Mas como sempre me tinha atendido em casos de aflição insistia e dava voltas... Depois voltei para casa e desolada continuei à procura, para ao fim de horas desistir e não me resignar.
Quando regressei a Lisboa fui a um ourives para substituir a pedra, mas era tão caro que desisti e guardei a pulseira para nunca mais a usar. Passaram-se Verões, Invernos e mais Verões, mas, este ano, como de costume ao voltar à Barca repetindo o ritual de sempre das as arcas, dos armários, das roupas, das pratas dos vidros, das louças e das garrafas, ao tirar uma delas toquei numa coisa fria que estava em cima duma prateleira. Pensando ser um bicho de conta morto, peguei num pano e com cuidado tirei – o para fora.
Era a safira que durante todo aquele tempo tinha estado ali bem perto de mim. Santo António ouvira-me, embora tivesse levado muito tempo.
Teresa de Mello – escritora, natural de Lisboa
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