Em anos de juventude o meu passatempo favorito era peregrinar pelo velho burgo portuense: subir íngremes calçadas lajeadas a granito; descer estreitas escadinhas, entaladas em prédios centenários; calcorrear as tortuosas vielas da Sé e antigas ruas bafientas da Vitória.
Não ia só. Como companheiro tinha guapo rapaz: baixo, esbelto e imparável conversador, que informava-me da genealogia das tradicionais famílias tripeiras e seus perdidos ramos em terras do Minho e além Marão.
De companheiro de escola, passou a amigo e confidente, e muitas vezes era ele que me convidava a essas incursões.
Nessa recuada época passear pela cidade era prazer que se cultivava. Os cafés permaneciam abertos até altas horas e os cinemas transbordavam. Os mais remediados, que se declaravam da classe média, recreavam-se deambulando pela baixa, observando vitrinas. Chegava-se a convidar amigos e parentes para esses passeios noctívagos.
Caminhava-se seguro e os guardas eram garantes da tranquilidade.
Ora, como disse, na companhia amiga de Manel Alpendurada, em regra após o almoço, realizava essas visitas de estudo. Era nesse tempo perito em história da cidade. Lia muito Magalhães Basto e Conde d’Aurora.
Arco das Verdades
Casa onde nasceu o Infante D. Henrique
Igreja de S. Nicolau
Entrada da Igreja da Santa Clara
Lembrei-me, hoje, da nossa curiosidade juvenil, ao atravessar o tabuleiro inferior de D. Luís I e topar que a Ribeira renasceu.
Agora está cheia de restaurantes típicos, repletos de turistas; mas então o espaço animava-se de vendedeiras: de peixe, fruta, flores e pano. Sob os arcos haviam mercearias e tasquinhas. Mercava-se: azeitonas, castanha, batata, cerejas de saco e na época própria, o sável era tanto que se oferecia a cinco tostões, peixão capaz de alimentar regimento.
Na velha rua de S. João – quantas vezes a subi com o Mane!, - nesse tempo haviam fortes armazéns. Fardos de bacalhau, sacos de arroz e batata saiam de camionetas, aos ombros de pujantes carrejões.
Todo esse frenético movimento morreu. Os prédios permanecem degradados e o pouco comércio que sobrevive não consegue quebrar o marasmo.
Neste meu recordar tempos que já não são, subi até largo de S. Domingos e entrei na rua das Flores.
Quando era jovem abundavam casas de ferragens e pichelarias. Haviam grandes armazéns e muito oiro. Tudo desapareceu; até a queijaria do Nunes, onde minha mãe adquiria o flamengo, e a Casa do Chã, onde meu pai comprava cem gramas de Ceilão, fecharam.
E sempre ao longo do passeio que realizei para reviver tempos idos, deparei casas delapidadas, abandonadas, desventradas. A baixa portuense encontra-se em ruínas, salvam-se os rés-do-chãos. Alindados pelas lojas, muitas ocupadas por chineses e indianos.
Onde estão os famosos estabelecimentos de outrora? A Casa Forte, a Lãmaria, Armazéns dos Anjos, Singer, Confiança, Simões Lopes e as livrarias Figueirinhas, Tavares Martins e Internacional, onde meu pai permanecia tardes ao redor dos escaparates?
Tudo desapareceu. Tudo se alterou. Outrora a minha cidade era calma, tranquila e acolhedora; ora, violenta, perigosa, deserta após as vinte horas; sem cinemas, sem cafés, sem movimento e quase sem polícia.
Quem hoje se aventura percorrer o velho Porto? Quem tem coragem de sair após o jantar? Quem ainda conserva o costume do passeio dos tristes?
A minha cidade está moribunda. O Porto da minha juventude, rasgado de alegres pregões, bicicletas, ardinas, peixeiras, padeiras, de crianças brincando, já não existe.
Ah que saudade tenho! Saudade do tempo em que o Porto era verdadeiramente tripeiro!
HUMBERTO PINHO DA SILVA - Porto, Portugal
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