Minha casa, ultimamente, anda parecendo um zoológico. Na verdade, não ultimamente, para ser franca. Nem tenho lembranças minhas antes de gostar de animais. Se eu pudesse, com certeza, estaria cercada de muitos mais deles. Por morar em uma cidade grande e ter limitações de espaço, apenas mantenho aqueles aos quais posso dar condições saudáveis de vida.
Fui começando aos poucos. Além dos meus dois fiéis escudeiros, Peteco e Floquinho, assim que me mudei de Araras para São Paulo e tratei de arrumar um aquário. Comecei com um peixinho, depois montei um aquário maior, mais um com peixes dourados e coisa acabou saindo do controle. Claro que nada disso é minha culpa, mas sim de um casal de peixinhos vermelhos, Platis, muito do animado, que levou bem a sério o crescer e multiplicar. O saldo de filhotes, pelas minhas contas, anda em torno de dezessete novos moradores. Por ora eles se encontram na “maternidade”, como chamo um aquário menor, no qual eles estão isolados com a finalidade de não se transformarem em alimento dos próprios pais, inclusive. Só para registrar, ainda não tenho a menor idéia do que fazer com eles depois, quando crescerem...
Um belo dia, uns amigos me fizeram uma proposta indecente: que tal se eu desse abrigo para um casal de periquitos que nascera na casa deles? Eles não sabiam o que fazer com os vários filhotes que iam deixando o ninho. Soltar não era uma possibilidade ecologicamente correta ou desejável, eis que os mesmos não são da fauna brasileira e isso poderia causar problemas ambientais, fora o fato de que, ambientados em gaiola, dificilmente sobreviveriam sozinhos. Eu não gosto de pássaros em gaiolas, mas, tá, se o motivo era nobre, eu aceitei e, dias depois, já eram mais dois a fazer parte da minha estranha família de pés, patas, penas e guelras.
Para meu desespero, notei que os dois verdinhos estavam de muito namorico. Nem foi preciso muito esforço mental para ligar as coisas. Ou seja, um casal jovem, a primavera no ar e eu, com certeza, iria dançar. Dito e feito. Já estão com dois ovinhos no ninho e só Deus sabe o que virá. Em breve serei eu a começar a procurar lar para os meus, digamos, netos. Aliás, se alguém se habilitar...
Por causa das sementes que acabam caindo da gaiola, além da ração dos cachorros, é comum que muitos outros pássaros apareçam no quintal de casa, certos de conseguir um reforço alimentar, uma variação na dieta. Assim, pardais, rolinhas, bem-te-vis, sabiás e maritacas, vira e mexe, dão o ar da graça. Alguns, mais ousados, invadem até mesmo a cozinha, em busca, creio, de guloseimas proibidas. As rolinhas, no entanto, são as mais imprudentes. Elas se aproximam e circulam sem se darem ao trabalho de reparar que o perigo as ronda. Insensatas, várias já foram parar na boca do Peteco, meu intrépido e cruel caçador de ratos, baratas, lagartixas e, para minha tristeza, pássaros.
Dia desses, antes que ele pudesse ver, eu encontrei, em um cantinho, escondida perto das plantas, uma rolinha. Logo vi que se tratava de um filhote e a retirei dali antes que fosse tarde demais. Por certo que haveria caído de algum ninho e que seus pais deveriam estar por perto. Ajustei-a dentro de uma gaiola e a coloquei onde ela pudesse ser vista por eles, mas dois dias se passaram sem que nada acontecesse. Coloquei comida e água, as quais ela se arriscou a comer. Extremamente mansa, ficava sobre os dedos de quem a retirasse da gaiola, tal como se fosse ensinada. Ganhou o nome de Belinha. Fizemos planos para ela. Se não fosse resgata pelos pais, como não conseguimos enxergar nenhum ninho no qual pudéssemos recolocá-la, então a alimentaríamos e, assim que pudesse voar, deixaríamos que ela ganhasse o mundo. Quem sabe, afeiçoada a nós, ela até aparecesse por ali vez ou outra, para nos rever.
No dia seguinte, ao chegarmos da rua, encontramos Peteco com a boca repleta de penas. Com o coração aos sobressaltos, descobri que ele abatera o que, penso, era um irmão da Belinha. O fazer diante de um cãozinho que se achava cumpridor de seu dever de vigilância e guarda e um pobre passarinho mastigado? Mesmo triste, nada mais pude fazer.
Mais um dia e, outra morte. Seria o pai ou a mãe da Belinha?? Meu Deus, o Peteco não passa fome e deixo isso bem claro, mas seu instinto de caçador fala mais alto e eu, racionalmente, não posso castigá-lo. Três dias se passaram e, de manhãzinha, encontrei a Belinha praticamente morta. Talvez o golpe de ver quase toda sua família sendo dizimada tenho sido fatal. Talvez ela tenha morrido de saudades ou talvez estivesse doente. Fizemos o que estava ao nosso alcance, mas eu ainda não conseguia me livrar da sensação de inutilidade dos nossos esforços. No fim, nada mesmo dera certo. Não haveria filhotes da Belinha na próxima estação e, se dependesse do Peteco, talvez nem mais rolinhas na face da Terra. Quis, contudo, dar um sentido à vida dela. Queria que conhecessem como era mansa, doce, como convém às criaturas de Deus. Em minha insignificância, sentei e escrevi essa crônica...
CINTHYA NUNES VIEIRA DA SILVA --Advogada, mestra em Direito, professora universitária e escritora - São Paulo
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