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Sexta-feira, 19 de Julho de 2019
ALEXANDRE ZABOT - O LIVRE ARBÍTRIO E A MECÂNICA NEWTONIANA

 

 

 

 

 

 

 

Alexandre Zabot

 

 

 

 

 

 

 

 

No passado o estudo da natureza levava o nome de “Filosofia Natural”. A obra prima de Newton, publicada no final do século XVII, levava este nome: Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. A publicação de Newton é um marco já bem sólido da Revolução Científica que começara e se desenvolvera por volta de um século antes com Bacon, Descartes, Copérnico, Galileu entre outros. É interessante relacionar o título da obra de Newton com o período em que ela foi publicada porque foi justamente a Revolução Científica que sagrou a separação entre a Filosofia Natural (que se tornou Ciência) e a Filosofia propriamente dita. Pensando Newton como ápice desta revolução, não é bem curioso que ainda tenha classificado seu trabalho como “Filosofia Natural”? Na verdade não, nem um pouco! A realidade é bem mais colorida do que o preto-e-branco com que a pintamos e Newton é o sujeito ideal para retratar este quadro. Genial, seu trabalho seria o pilar da Física e da Matemática nos próximos 2 séculos. Entretanto, passou a maior parte da sua vida como um alquimista e exegeta, bem longe do que hoje consideramos ciência.

As descobertas de Newton foram a base (e também boa parte da estrutura!) do que na Física é conhecido por “Mecânica”. A Mecânica é o estudo dos movimentos e, principalmente, das suas causas. Ou seja, como e porque um objeto se move. Esta é uma discussão que já vinha desde os pensadores gregos, especialmente Aristóteles. Mas foi Galileu quem começou a grande revolução científica nesta área quando deu o passo inicial descrevendo o movimento de um objeto sob a ação da gravidade da Terra. Depois, Newton propôs suas famosas três leis da Mecânica, que são capazes de explicar e prever o movimento de qualquer corpo. Para isso basta conhecer sua posição e velocidade em um dado instante e também que deste momento em diante sejam conhecidas as forças que atuam sobre ele ao longo de toda sua trajetória. Posteriormente, com a lei da gravitação universal e as três leis de Kepler, o homem passou a ser capaz de explicar todos os movimentos, nos céus e na Terra.

O sucesso destas teorias foi enorme. Tão grande que passou a imperar um sentimento de triunfalismo, uma posição filosófica que ficou conhecida por “determinismo”. Basicamente os deterministas acreditavam que com a nova mecânica era possível (pelo menos em teoria) prever tudo o que aconteceu e acontecerá no Universo. A dificuldade está em conhecer todas as forças que regem nosso mundo e, num dado instante, todas as posições e velocidades de todos os objetos do Universo. Claro que todos sabiam que isto nunca seria alcançado. Mas, na verdade, isso também não importava. O princípio de “poder conhecer” é que era fundamental, pois ele enterrava o livre arbítrio!

O homem deixava de ter liberdade sobre suas próprias decisões, todas elas eram, conforme esta visão, frutos de meras condições físicas que podiam ser previstas pelas leis da natureza. Em outras palavras, você não toma suas próprias decisões, tudo o que você faz já está traçado no livro da natureza, foi determinado desde o início dos tempos. Daí o nome, “determinismo”. Ora, a conclusão óbvia de não ser responsável por suas ações é que você também não pode ser responsabilizado e, portanto, punido.

O corolário continua pois outro personagem relevante que é suplantado pelo determinismo é Deus. Se tudo que acontece aqui neste mundo já está bem determinado e você não é sujeito das suas ações, Deus passa a ter, na melhor das hipóteses, um papel secundário no começo dos tempos, como primeira causa. Posição defendida pelos “deístas”. Claramente uma heresia para os católicos que sempre defenderam que Deus não só cria o mundo, mas o sustenta e age nele através da história. O “cientificismo” (o triunfalismo da ciência, supostamente capaz de explicar tudo) nasce junto com a ciência, é um efeito colateral que tem raiz na soberba de acharmos que somos capazes de conhecer tudo e não precisamos mais de Deus. Temos o conhecimento e somos como deuses. O pecado original se perpetua.

O deterministas, no entanto, jamais poderiam imaginar que a própria física de Sir Isaac Newton iria provar que eles estavam errados. Quem primeiro percebeu isso foi o grande matemático francês Henri Poincaré, no final do século XIX. Ele lançou as bases teóricas do que viria a ser conhecido por “Teoria do Caos”. Poincaré demonstrou que para certas classes de problemas físicos não é possível prever as posições e velocidades dos corpos após um determinado período de tempo. A causa deste comportamento não é difícil de entender. Como falei antes, para prever um movimento precisamos conhecer as leis de força e, num dado instante, a posição e velocidade do objeto. Mas tanto a posição quanto a velocidade precisam ser medidas, e não podemos medi-las com precisão infinita. Ainda que seja possível medir sempre com mais precisão se melhorarmos a técnica, sempre fica uma incerteza. O que Poincaré mostrou é que, por menor que seja esta incerteza, em certos problemas ela se amplia de tal forma depois de um tempo que é impossível prever o que acontecerá dali em diante. Isso acontece, por exemplo, no movimento orbital de mais de dois corpos, como no nosso sistema solar. Também acontece nas previsões meteorológicas ou no simples gotejar de uma torneira. Os deterministas estavam errados, a natureza nos prega peças e usando as próprias leis de Newton é possível mostrar que nem sempre é possível determinar o que acontecerá no futuro.

A verdade é que apesar das pretensões cientificistas, o método científico não tem o poder de compreender toda a realidade. A Ciência é só uma das possíveis leituras que se pode fazer da realidade. Uma leitura muito rica e que já demonstrou ser capaz de coisas incríveis, sem dúvida. Entretanto, querer transformar as conclusões pontuais das teorias, que se aplicam a contextos bem específicos, em conclusões gerais sobre nossa existência é, inexoravelmente, uma atitude que leva ao fracasso. Especialmente porque na Ciência, todas as teorias são transitórias. Mais cedo ou mais tarde, descobre-se que estavam erradas ou incompletas. Aqui eu só mostrei esse processo dentro do próprio escopo da mecânica newtoniana, nem cheguei a falar sobre a mecânica quântica ou a relativística. Nestas duas há muitos outros exemplos de como a natureza não nos permite traçar passo a passo o futuro. Continuamos livres, donos e responsáveis pelas nossas próprias decisões. E Deus, parece que joga mesmo dados com o Universo. Mas essa é outra conversa, precisamos falar sobre Mecânica Quântica.


06/2010

 

 

 

ALEXANDRE ZABOT   -    Fisico. Doutorado em Astrofisica. Professor da Universidade Federal de Santa Catarina.   www.alexandrezabot.blogspot.com.br

 



publicado por Luso-brasileiro às 11:31
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