PAZ - Blogue luso-brasileiro
Quinta-feira, 1 de Dezembro de 2022
ALEXANDRE ZABOT - PRINCÍPIO ANTRÓPICO

 

 

 

 

 

 

Alexandre Zabot

 

 

 

 

 

Princípio Antrópico (parte I)

 
Stephen Jay Gould, professor de Harvard e famoso paleontólogo e divulgador de ciência americano, escreveu em um de seus livros que: “Chegamos perto, milhares e milhares de vezes, de ser deletados pela guinada radical da história para outro caminho possível. Volte a fita e torne a passar milhões de vezes e duvido que algo parecido com o 'Homo sapiens' evoluísse novamente alguma outra vez. A vida é mesmo maravilhosa.” (Wonderful Life, 1989). Gould sabe muito bem do que está falando, pois é mundialmente famoso na área da biologia evolutiva por ter ajudado a propor o modelo do Equilíbrio Pontuado, uma importante contribuição à teoria da evolução de Darwin. Gould era agnóstico, mas a frase dele não tem nada a ver com religião, é uma afirmação totalmente científica. De fato, praticamente toda a comunidade científica tem a mesma visão que ele e concordaria com a frase sem hesitar. O problema não é a afirmação em si, porque não passa de uma constatação, mas as interpretações que se podem dar a ela.
A afirmação de Gould tem relação com o chamado “ajuste fino” (tradução livre da expressão inglesa fine-tuning) das leis da natureza. O termo ajuste fino é bem conhecido na física teórica mas provavelmente tem sua origem nos laboratórios. Pense no caso de se medir o comprimento de uma barra com uma régua. Primeiro se aproxima a régua da barra, isso já dá uma medida “grosseira”. Depois, com cuidado, se alinha as extremidades da régua e da barra e se marca a posição, o que dá uma medida mais precisa, mais “fina”. O “ajuste fino” das leis da natureza é o fato de que se as leis da natureza fossem ligeiramente diferentes do que são, não existiria vida na Terra ou, ao menos, não vida humana.
Este ajuste fino das leis do universo leva ao “Princípio Antrópico”. A palavra antrópico tem sua raiz no grego e está relacionada com ser humano. Existem vários enunciados do Princípio Antrópico, de maneira informal pode-se dizer que afirma que a vida é uma necessidade do universo. Mas já aviso que esta definição informal não é unânime, há muita discordância quanto à definição do Princípio Antrópico, pois ela está no campo da filosofia e da metafísica. Penso, porém, que enunciado assim deixa clara a ideia do que trata o Princípio. Vou dar alguns exemplos concretos do que motiva estas ideias.
Pensar em vida é pensar em fragilidade. Via de regra, as formas de vida que conhecemos são muito sensíveis às condições do ambiente onde vivem. As temperaturas no universo podem variar de valores próximos do zero absoluto a milhões de graus centígrados (em alguns casos muito mais que isso). Entretanto, a vida necessita de temperaturas bem mais moderadas. Ainda que possamos encontrar alguns micro-organismos vivendo em temperaturas extremas, elas não chegam nem perto dos extremos do universo. O mesmo vale para outras condições físicas, como pressão, taxas de radioatividade ou de presença de radiação nociva (como raios-x ou ultravioleta), etc. Para que haja vida é necessário que existam condições ambientais moderadas, e mais, que sejam estáveis dentro de um tempo considerável, de milhares a milhões de anos, dependendo do fator que se considera.
Apesar de impressionantes, estas condições especiais que encontramos na Terra, e que talvez num futuro próximo também possamos encontrar em outros planetas do universo, são muito menos impactantes do que outras condições muito mais singulares que foram necessárias para haver vida hoje. Especialmente vida inteligente, ou seja, nós. Os exemplos mais fáceis de entender são as próprias leis da natureza. Tanto a lei da atração eletromagnética quanto a lei da gravidade variam com o inverso do quadrado da distância. Dobre a distância entre a Terra e o Sol que a força gravitacional entre eles cai por um fator quatro. Se a dependência com a distância fosse diferente, cúbica por exemplo, não teríamos órbitas estáveis dos planetas em nem teríamos átomos estáveis. Sem estas duas condições, é simplesmente impossível existir qualquer vida, por mais estranha que possa ser.
O mesmo efeito acontece com muitas outras leis da natureza. Não só com as equações, mas com as constantes que estão envolvidas nestas leis e que dão uma medida da intensidade das interações fundamentais. As taxas de fusão nuclear no núcleo das estrelas, por exemplo, por um mínimo que fossem diferentes do que são, poderiam implicar em um universo completamente diferente, inclusive sem estrelas! E um universo sem estrelas é um universo sem variedade química, pois são as estrelas que fabricam quase todos os elementos químicos que conhecemos. No início do universo praticamente só havia hidrogênio e hélio, que foram transformados pelas estrelas em outros elementos, necessários para a existência de vida.
Estes poucos exemplos são suficientes para justificar a frase de John Polkinghorne, reverendo Anglicano e ex-catedrático de Física-matemática da Universidade de Cambridge: “O universo tinha bilhões de anos de idade quando a vida apareceu, mas ele já estava prenhe desta possibilidade desde o princípio” (O Princípio Antrópico e o Debate entre Ciência e Religião, em The Faraday Papers). Evidente que o Princípio Antrópico vem ao encontro dos cristãos que sempre viram o universo como uma criação de Deus feita para o homem, cume da criação. Dizer que Deus quis a criação e o homem é a maneira cristã de afirmar que o ser humano é uma necessidade, ou melhor um fim, do universo! Eis uma afirmação que dita assim nos meios laicistas em que vivemos hoje certamente causaria muitos protestos inflamados dos cientificistas de plantão. O curioso é que esta forma de pensar não tem nada de anticientífica. Muito pelo contrário, em parte se baseia exatamente nas descobertas mais fundamentais da física e da biologia.
É evidente que o ajuste-fino das leis da natureza e o Princípio Antrópico não são baseados só em ciência. Eles também levam em consideração argumentos filosóficos, teológicos e metafísicos. Mas quem disse que só a ciência tem as respostas para as perguntas dos homens? Ou indo mais longe, quem disse que só a ciência tem respostas legítimas para estas perguntas? Evidente que a fé também tem respostas legítimas, e muito mais importantes aliás. Há uma séries de argumentos contra e a favor do Princípio Antrópico. Tanto do ponto de vista religioso quanto científico. Vou voltar a este tema na próxima coluna e discutir os argumentos mais relevantes.

10/2011
 
 
 
 

Princípio Antrópico (parte II)

 
Na minha última coluna mostrei algumas evidências que a ciência vem descobrindo e acumulando nas últimas décadas sobre como o universo parece se encaixar perfeitamente à vida. Não digo vida humana, mas vida em geral. É incrível que apesar da vida ser tão frágil, a Terra abrigue todas as condições para o surgimento e a manutenção dos seres vivos. Como tentei mostrar na última coluna, estas condições de que dispomos aqui na Terra são realmente muito especiais no sentido de que dependem fortemente das leis físicas. Se estas fossem ligeiramente diferentes do que são, não seria possível haver vida aqui ou em qualquer outra parte do Universo. Aliás, haver vida em outro lugar do universo é algo tão provável quanto haver vida aqui, ou seja, é algo certo. Que tipo de vida, não sabemos. Mas hoje as evidências de que o universo abriga inúmeros locais bons para a vida vêm se acumulando com muita rapidez.
A constatação de que as leis físicas são como que “ajustadas” para a vida no universo é o chamado “ajuste fino” das leis da natureza. A partir dele alguns cientistas, filósofos e teólogos defendem a existência de um “Princípio Antrópico”. Como também falei na última coluna, há vários tipos de formulações para o Princípio Antrópico. Porém, duas formas são as mais comuns, são as chamadas “Forma Suave” (ou Fraca) e “Forma Forte”. Quero discutir estas formas com mais detalhes e também as críticas e defesas delas. No fundo, esta questão não passa da velha discussão sobre acaso e necessidade nas leis físicas, que já foi tratada neste espaço tanto por mim quanto pelo Marcio.
Como há muitas formulações diferentes para o Princípio Antrópico, vou usar as definições de um livro famoso sobre o assunto: “The Anthropic Cosmological Principle” de John Barrow e Frank Tipler. Eles definem as duas versões do Princípio assim:
 
Princípio Antrópico Suave (ou fraco) (PAS): Os valores observados de todas as quantidades físicas e cosmológicas não são equiprováveis, mas assumem valores restritos pela exigência de que existem locais onde a vida baseada em carbono pode evoluir e também pela exigência de que o Universo é antigo o bastante para que isso já tenha acontecido.
 
Princípio Antrópico Forte (PAF): O universo deve, obrigatoriamente, ter as propriedades necessárias para permitir o desenvolvimento da vida em algum estágio de sua história.
 
Há pelo menos outras duas formulações alternativas bem conhecidas, mas estas duas que apresentei são as mais famosas e também mais discutidas. Alguns críticos com tendências à ironia dizem que o PAS não passa de dizer que “o universo é como é porque é!”. A ironia não é falsa, mas como toda ironia, descarta aspectos interessantes com muito facilidade. Uma história famosa vai ajudar a explicar o que quero dizer.
Por volta de 1950 a Mecânica Quântica e a Física Nuclear estavam em alta e pela primeira vez começava-se a vislumbrar os mecanismos que geram a energia das estrelas. Sabia-se que a responsável pela energia era a fusão nuclear, mas ainda não se compreendia bem quais eram os mecanismos. Uma reação nuclear chamada de triplo-alfa era invocada como parte da explicação. Nela, três núcleos de Hélio (partículas alfa) colidem e formam um núcleo de Carbono. O problema é que esta reação teria baixa probabilidade e portanto não poderia formar todo o Carbono observado no Universo. Fred Hoyle, um dos maiores Astrofísicos que já houve (aliás, foi quem cunhou o termo “Big Bang”), raciocinou por meio do Princípio Antrópico: se há Carbono do universo, então esta reação deve ser favorecida de algum modo. Ele previu que este favorecimento se dava por meio de uma ressonância do Carbono e estimou a energia. Acertou na mosca!
Ou seja, o PAS pode ser um tanto óbvio por dizer que já que vemos vida no universo, as leis físicas devem permitir que haja a vida, porém, é possível fazer previsões a partir desta simples constatação. Afirmações simples podem encerrar verdades muito profundas! Basta ler o Evangelho para se convencer disto. Na verdade, as críticas ao PAS não passam de ironias porque no fundo ele é uma simples constatação. Embora, para seus defensores, seja uma constatação muito importante.
A grande discussão acontece em torno do Princípio Antrópico Forte (PAF). A primeira vista ele nem parece ser uma afirmação forte e ao que tudo indica, se encaixa muito bem na visão cristã do universo. Porém, ele comete dois erros graves: inverte a lógica causa-efeito e é um tipo disfarçado de Design Inteligente. Por estes dois erros, eu penso que o PAF não pode ser aceito, tanto por uma perspectiva científica quanto teológica, pois o Design Inteligente não passa de uma espécie de teoria de Deus das Lacunas que subjuga nosso Deus a um mero reparador de uma Criação barata e mal feita. O que, evidentemente, Ele não é!
Comecei o outro artigo artigo citando o paleontólogo Stephen Jay Gould, me permitam citá-lo novamente para explicar porque o PAF inverte a lógica causa-efeito. Para Gould, o PAF é como dizer que as salsichas de cachorro quente foram feitas finas e longas para se adaptarem ao pão de cachorro quente! É verdade, a crítica tem fundamento porque na realidade, é a vida que se adaptou ao universo e não o contrário. Mesmo dentro de uma perspetiva cristã, onde Deus criou o universo e desde sempre quis a vida e o ser humano, é muito limitante dizer que o universo é consequência da vida. Na minha opinião, a visão correta é que Deus, na sua imensa sabedoria e poder, criou o universo e as leis físicas capazes de gerar vida. Mas esta é consequência, e não causa. Desta forma, penso eu, elevamos Deus a posição de Criador. Dizem que Einstein defendia que a grande questão era se Deus teve ou não escolha ao criar o universo. Para os cristãos, é evidente que Deus teve escolha. Ele nos escolheu, nos quis! O PAF deixa Deus sem escolha, o que é um absurdo.
Mas inverter a lógica causa-efeito não é o maior problema do PAF e sim o fato dele ser uma forma disfarçada de Design Inteligente. Ou seja, para os defensores do PAF existem leis físicas que só podem ser explicadas por uma questão de finalidade. Dizer que uma lei da natureza é de tal forma porque assim permite que haja vida e os seres humanos é declarar uma enorme falta de capacidade de entender a natureza. Não precisamos usar Deus para explicar a forma das leis da natureza, Ele a criou cognicível. Para mim, esta é uma das melhores provas da existência de Deus.

01/2012


publicado por Luso-brasileiro às 11:25
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