No sentido filosófico primeiro, conforme a terminologia clássica, democracia é uma das três formas simples de governo, ou seja, aquele em que a multidão governa. Na linguagem corrente, entende-se por democracia um estatuto jurídico-institucional em que os cidadãos gozam de certos direitos - inclusive o de votar e, dessa forma, participar da condução da coisa pública - e de liberdades muito amplas. Não pretendo estar aqui dando uma definição cabal do que seja democracia, mas apenas uma noção sumária. Definir cabalmente democracia é tarefa assaz árdua... se é que seja realizável. Cerca de 300 definições de democracia foram registradas numa tese de doutorado defendida numa universidade norueguesa, informa Eugenio Vegas Latapie em seu livro "Consideraciones sobre la Democracia" (Madri: Ed. Afrodisio Aguado, 1965, p. 22). A célebre frase tantas vezes atribuída a Abraham Lincoln ("democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo"), na realidade não é uma definição; a primeira condição para que uma definição realmente defina é que seja clara, que não contenha termos ambíguos; ora, nessa batida, sonora e vazia frase, a palavra povo não é tomada em sentido unívoco, mas em três sentidos diferentes...
É preciso não confundir a boa e verdadeira democracia - vigente, por exemplo, em muitos cantões suíços ou, em âmbito municipal, nas vilas de Portugal antigo e do Brasil colonial - com as falsas democracias, decorrentes da Revolução Francesa.
As democracias demagógicas da atualidade são na verdade, falsas democracias; nelas, o povo se ilude, julgando que é soberano apenas porque, de tempos em tempos, emite um voto que, matematicamente, nada significa. Essas democracias demagógicas baseiam-se numa série de equívocos e problemas mal colocados, que têm raiz no Iluminismo e que a Revolução Francesa espalhou pelo mundo. Tais equívocos são o individualismo e o igualitarismo exacerbados, o culto cego do valor numérico, a pretensa infalibilidade das multidões, a soberania absolutista da nação, a noção de que o Estado é onipotente e não precisa estar sujeito a nenhuma ordenação de ordem moral ou ética. Esses equívocos profundos são apriorísticos e cerebrinos, sem qualquer base na realidade.
As falsas democracias pressupõem na realidade toda uma filosofia de vida, de fundo igualitário e libertário, incompatível com o Direito Natural e com o Bom Senso, e o mais das vezes são meros disfarces de cruéis totalitarismos. Um exemplo: segundo a falsa democracia, lei é a mera expressão da vontade popular. O que a multidão quiser, independente de qualquer consideração de ordem moral, será lei e deverá ser imposta como tal.
Um dos pressupostos da falsa democracia é o de que a multidão sempre acerta. Um homem pode errar, mas quando se reúne a muitos outros, as inteligências de todos, somadas, são uma inesgotável fonte de sabedoria. Ora, de fato não são só as qualidades que se somam, mas também os defeitos, as paixões, os unilateralismos, os preconceitos etc. não somente se somam, mas também se potencializam.
Dessa pseudo-infalibilidade das multidões se infere - na lógica da falsa democracia - a inexorabilidade da vontade popular. A multidão quis algo, seus representantes legislaram, logo aquele algo se transformou em lei. Algumas consequências decorrem disso. De um lado, como raríssimamente a multidão pode querer algo por unanimidade, convencionou-se, também a priori, que as maiorias - simples ou absolutas, conforme o caso - exprimem suficientemente a totalidade da multidão. Ou seja, se a metade mais um quer algo, esse algo tem força de lei e a metade menos um restante é obrigada a obedecer. Por outro lado, como a vontade popular é de si móvel e oscilante, a multidão pode, por si ou por meio de seus representantes, hoje querer uma coisa, amanhã o contrário. Na lógica do radicalismo democrático, entra no corpo legislativo um elemento de instabilidade, de descontinuidade, que só pode produzir o caos. Não será caótico, por exemplo, o sistema legal brasileiro, com mais de 600 mil leis em vigor, no âmbito federal, estadual e municipal? Lembro que somente no âmbito municipal de Piracicaba a legislação local ocupou, há alguns anos, um grande número de volumes...
Outra consequência, ainda, e gravíssima, é que a multidão pode querer algo mau, e nesse caso fará inevitavelmente uma lei injusta, que redundará em prejuízo do bem comum.
Por outro lado, se a vontade da multidão é lei e é lei inexorável, no caso de essa multidão querer acabar com a democracia e, por exemplo, instaurar um regime ditatorial, injustamente arbitrário e violento - ou seja, precisamente o oposto da democracia - a democracia... terá sido democraticamente destruída! Hitler, no plebiscito realizado em agosto de 1934, foi esmagadoramente - e democraticamente, note-se - apoiado por 90% do povo alemão. Foi com pleno respaldo democrático que o nazismo, uma das piores tiranias que a História registra, subiu ao poder e nele se manteve durante muito tempo.
É por isso que digo que o absolutismo democrático contém os germes destruidores da própria democracia. É por isso também que sustento que a autêntica democracia não pode ser absolutista, mas deve ser subordinada a um Ethos e ao Direito Natural. Tal subordinação é condição de autenticidade para a democracia, e é condição de sobrevivência para ela.
Outra noção de importância primordial para a avaliação da verdadeira democracia é a de opinião pública. Num regime democrático, o parlamento é tanto mais autêntico quanto, de fato, ele reflete autenticamente a opinião pública de que é representante. Teoricamente pelo menos, a opinião pública influencia seus representantes, estes fazem a lei, e o governo, executando a lei, cumpre a vontade da opinião pública, isto é, da nação. Daí a importância da opinião pública em si, e sobretudo - ponto particularmente importante e muitas vezes esquecido - dos organismos que influenciam e condicionam a fundo a livre expressão da opinião pública, ou seja, os chamados meios de comunicação social. Porque estes, em última instância, acabam sendo os verdadeiros dirigentes do país.
Na perspectiva da falsa democracia, cada cidadão não vale senão tanto quanto vale seu voto. E um voto individual, perdido na imensa caudal de outros votos, quase nada vale. Não deixa de ser curioso que a mesma falsa democracia, que tanto hipertrofiou o individualismo, acabe reduzindo cada indivíduo a mero grão de areia numa praia imensa, só, isolado, incapaz de efetivamente influir no andamento da coisa pública, à mercê da tirania das maiorias numéricas que se movem ao sabor de forças que não está ao alcance dele controlar e nem sequer influenciar.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS, é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História e da Academia Ptracicabana de Letras.
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