Assisti anos atrás a uma interessante conferência. ministrada no auditório do SESC de Piracicaba por uma professora da USP, sobre uma nova tendência da culinária mundial, chamada Comfort Food (em tradução livre, alimentação emocional).
O Comfort Food é um desdobramento, uma derivação do Slow Food, movimento que nasceu na Itália, em oposição à proliferação de MacDonalds. O Slow Food já é bem conhecido, tem numerosos seguidores aqui em Piracicaba e não me estenderei sobre ele. Basta lembrar que propõe o resgate dos alimentos tradicionais que nossos bisavós consumiam e não lhes faziam mal algum, desde que os consumamos no mesmo estado de espírito de nossos maiores, ou seja, com a calma, a ponderação, o equilíbrio de outrora; e que os preparemos tanto quanto possível com os mesmos métodos de preparo de outrora. Em outras palavras, nada de colocar um legume num processador! Pelo contrário, rale-o cuidadosamente numa raladeira tradicional. Nada de comprar carne moída para fazer quibe! Compre a carne adequada, pique-a manualmente em pedacinhos bem pequenos, depois soque-a bem socadinha, num pilãozinho de mesa, junto com o trigo, as folhas de hortelã, a cebola cortada em pedacinhos bem pequenos (cortada também manualmente, claro!), sem esquecer a pimenta síria que dará o gosto. Dá bastante trabalho, sem dúvida, mas o gosto é muito melhor. E você poderá comer sem a sensação de estar absorvendo calorias em excesso... já que gastou muitas calorias no preparo.
Não dá para fazer todos os dias, mas experimente fazer isso num sábado ou num domingo. Procure fazer isso não solitariamente, mas em companhia de amigos ou amigas, de preferência da sua mesma faixa de idade. É agradabilíssimo. Vale por uma verdadeira terapia...
Já o Comfort Food é mais recente, nasceu nos Estados Unidos entre gastrônomos e psicólogos ligados ao Slow Food.
Que prega o Comfort Food? Prega que se procure, pelo menos uma ou duas vezes por semana, saborear algum alimento que, emocionalmente, pelo cheiro, pelo sabor, pelo contexto em que é saboreado, nos remeta para a infância, trazendo consigo aquela série de sensações boas, agradáveis, próprias da infância: aconchego, proteção, segurança, carinho, afeto, paz, amor etc.
Isso deve ser realizado sem preocupações dietéticas, sem pressa, sem frenesi, sem emoção. É algo mais passivo e contemplativo do que ativo e racional.
O Comfort Food sustenta que, do ponto de vista emocional e psicológico, é enorme o bem que esse costume, desde que praticado duas ou três vezes por semana, pode fazer a todos.
O curioso é que varia muito de pessoa para pessoa, o alimento que mais produz esse efeito. Proust, a partir das madeleines mergulhadas no chá, remeteu seu espírito imediatamente para o ambiente da casa de sua avó, e a partir desse minúsculo episódio deu início à prodigiosa narrativa de “Em busca do tempo perdido”. Ele descreve o cheiro, o sabor, a fumaça que saía da xícara e, a partir dali, por associação de ideias e de imagens, se desdobra o seu maravilhoso livro...
Para algumas pessoas, o cheiro do café, sendo coado, desperta esse sentimento. Para outros, será o do pão ou o do bolo de fubá saindo do forno. Para outros, um suculento arroz com feijão. Para outros, será o chocolate, a espiga de milho verde cozida ou assada na brasa, o prato fumegante de canja de galinha, o lambarizinho pescado na lagoa, passado na farinha e frito, ou singelos bolinhos de arroz que a mãe fazia no meio da tarde, ou, ou, ou... os exemplos poderiam se multiplicar ao infinito.
Conheci muito bem um ilustre acadêmico, escritor e mestre consagrado, que do alto de seus oitenta e tantos anos não hesitava: quando encontrava na rua um vendedor de amendoim torrado, religiosamente parava, comprava, sentava-se no primeiro banco de praça que encontrava vazio e saboreava em silêncio. Para ele, tratava-se de um retorno à infância, autenticamente comfort food.
Conheço um advogado bem sucedido, de meia-idade, louco por aqueles cones crocantes que são vendidos na rua, levados geralmente em latas, por vendedores que chamam a atenção dos passantes com um som estridente característico, produzido por uma matraca. Ignoro o nome desses petiscos, que de vez em quando aparecem. Mas sei que são exatamente como eram quando eu era criança. E sei que naquele tempo já eram velhos. Pois esse meu amigo é capaz de parar o carro e sair correndo atrás do vendedor, para não perder a possibilidade de, ele também, retornar à infância. É capaz de faltar a uma audiência, de perder um prazo processual... mas não perde a oportunidade de comer aquilo. Comfort food...
A professora da USP que fez a palestra no SESC começou pedindo aos assistentes que recordassem um cheiro e um sabor da infância. As respostas foram numerosas e muito variadas. Mas quase todos recordaram, curiosamente, algum cheiro de comida, ou alguma comida com cheiro muito característico.
Daí surgiu meu desejo seria constituir um Museu dos Odores e dos Sabores. Falarei desse hipotético museu em outro artigo.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS, é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História e da Academia Ptracicabana de Letras.
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