Uma das características do povo brasileiro é sua capacidade extremamente desenvolvida de improvisar, de encontrar rapidamente soluções hábeis para os problemas mais inesperados. É o famoso “jeitinho”, indissociável do modo de ser brasileiro. Acho que essa é, sem dúvida, uma qualidade positiva do nosso povo, se bem que tenha, também, uma contrapartida menos boa.
Precisamente porque consegue improvisar soluções para os problemas, o brasileiro não gosta de planejamentos e tem preguiça de fazê-los. Acha-os, ademais, supérfluos. Perder tempo prevendo problemas lhe parece ocioso e contraproducente. Afinal, não é melhor poupar as energias para resolver o problema na “hora H”? O resultado é que, muitas vezes, não conseguimos evitar problemas que, com um pouquinho de previsão, poderiam ter sido evitados. A tragédia de Brumadinho, por exemplo, poderia não ter enlutado tantas famílias mineiras.
Quando um papa está começando a ficar velho e doente, os grandes jornais já costumam preparar as matérias que figurarão no seu obituário. Já de longa data estão elas prontas. Não só isso, também já têm preparadas as biografias completas dos principais “papáveis”, ou seja, dos cardeais mais cotados para suceder ao Pontífice reinante. Também as grandes editoras já encomendam, sigilosamente, a jornalistas ou escritores especialmente dedicados ao estudo dos assuntos eclesiásticos, livros com biografias dos principais “papáveis”. A editora arca com os custos da redação de livros que nunca serão editados… mas o lucro obtido com as vendas da biografia completa do novo papa, lançada logo na mesma semana da sua eleição, compensa largamente os gastos.
Grandes grupos econômicos europeus, quando se aproximam eleições particularmente decisivas para os rumos nacionais e de resultado incerto, já contratam equipes especializadas que, de modo sigiloso, fazem projeções econômicas na previsão das várias hipóteses de resultados das urnas, e já propõem medidas a serem adotadas em qualquer delas. Nunca deixam para resolver esses assuntos depois de apurados os votos.
Conta-se que em certa madrugada de julho de 1870, o Marechal von Moltke, comandante do exército prussiano, foi acordado por um oficial assistente, que lhe informou ter sido o território da Prússia invadido pelas tropas de Napoleão III, imperador dos franceses. O velho militar, imperturbável, recomendou ao assistente que fosse até seu gabinete e executasse imediatamente as medidas emergenciais que já estavam prontas para essa eventualidade. Estavam numa das gavetas de sua escrivaninha, em um envelope especial. Em seguida, despediu o assistente, virou-se para o outro lado e continuou calmamente a dormir. A Prússia, como se sabe, ganhou essa guerra.
Em 1940, quando as tropas nazistas invadiram o território francês por uma região onde jamais se esperaria um ataque, e em poucas semanas tomaram a cidade de Paris, o plano militar seguido pelos invasores tinha sido elaborado nos seus mínimos detalhes quase 100 anos antes, por um aluno da academia militar prussiana. Era um plano velho, mas, analisado pelo alto comando alemão, foi julgado perfeitamente atualizado e adequado. Deu certo, infelizmente. O mais incrível era que o alto comando alemão possuía dezenas de planos similares, muitos deles feitos por jovens alunos de academias militares, todos perfeitamente conservados e catalogados. Apenas foi preciso escolher um.
Esses planejamentos de longo prazo são desagradáveis ao espírito brasileiro, que prefere resolver na última hora, valendo-se da sua incrível criatividade improvisadora. Mas são indispensáveis para um trabalho sério.
Outro problema é o da procrastinação. Nós, brasileiros gostamos de deixar tudo para a última hora, Trata-se de defeito herdado de nossos maiores portugueses, pelo menos a julgar por Eça de Queiroz, que criticava sempre esse mau hábito dos seus compatriotas. “Procrastinare lusitanum est”, escreveu ele em “A ilustre casa de Ramires”, para explicar o porquê de Gonçalo Mendes Ramires, que havia prometido ao Castanheiro, seu antigo colega na Universidade de Coimbra, uma novela histórica sobre as glórias dos passados Ramires, sempre empurrava para mais adiante o início do trabalho.
A procrastinação, no fundo, é uma forma de preguiça. Os alemães, que por temperamento e hábito normalmente são o contrário disso, têm uns versinhos muito expressivos: “Morgen, morgen, nur nicht heute, / sagen alle faulen Leute” (amanhã, amanhã, desde que não seja hoje, dizem todos os preguiçosos).
Os ingleses, como os alemães, também têm muitos defeitos, mas geralmente não são procrastinadores contumazes como nós. Traduziram, também em versinhos rimados, o mesmo pensamento: “Later, later, not today, / all the lazy people say” (mais tarde, mais tarde, mas não agora, dizem todas as pessoas preguiçosas).
No Brasil, temos um dito muito sábio, que contém a mesma filosofia de vida: “Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje”. O espírito brincalhão do nosso povo logo fez uma adaptação a esse sábio conselho. Ficou assim: “Não deixes para amanhã o que podes fazer depois de amanhã”.
Faço em tempo, para evitar más interpretações, uma importante ressalva: quando, neste artigo, aponto qualidades ou defeitos de brasileiros, portugueses, alemães ou ingleses, falo das tendências gerais desses povos, não afirmo que não haja exceções... Também há alemães e ingleses procrastinadores e imprevidentes, como também há portugueses e brasileiros que não possuem esses defeitos e até são exemplo das virtudes opostas.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - É licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
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