A inveja desde os mais remotos tempos exerce grande papel na História humana. Encontram-se traços dela em todas as épocas, na história de todos os povos. A inveja é muito comum, tão disseminada que absolutamente todas as pessoas já a notaram... nos outros! Mas ninguém reconhece em si próprio a inveja, o mais oculto e dissimulado dos vícios humanos.
A palavra inveja provém do latim invidia, substantivo da primeira declinação, derivado do verbo invideo (invidere, no infinitivo), ao pé da letra, “ver em”. Note-se, entretanto, que no caso o prefixo latino in não deve ser traduzido pela preposição em, mas pela preposição contra, ou pela locução prepositiva em oposição a. Invidere, pois, significa “ver ao contrário”, “ver de má vontade”, “ver de modo mau” ou, mais livremente, “ver de maus olhos”, projetando sobre o outro um olhar malicioso que distorce a realidade. Denomina-se inveja aquele sentimento malévolo de tristeza pelo bem alheio, sentimento esse que atormenta e mortifica o invejoso, levando-o a ações censuráveis para privar o possuidor de seu bem. Sendo o latim uma língua bastante sintética, seus vocábulos frequentemente eram usados em acepções que variaram ao longo dos séculos e de acordo com preferências estilísticas locais e pessoais dos autores que as utilizaram. Isso explica que a palavra invidia tenha sido usada em sentidos muito diversos e que nem sempre o vocábulo latino invidia deva ser traduzido por inveja, podendo, conforme o caso, sê-lo por emulação, ciúmes, desejo intenso, competição, concorrência, disputa, rivalidade etc. E explica também que várias outras palavras tenham sido usadas para por autores latinos e que, numa tradução fiel para nosso idioma, devam ser traduzidas por inveja. É o caso das palavras invidentia, obtrectatio, aemulatio, zelus, zelotypia, disputatio e livor. Todas elas podem, conforme o contexto, ser traduzidas adequadamente por inveja.
Do latim invidia provieram vocábulos cognatos nos idiomas neolatinos: no português, inveja (ou enveja, forma arcaica), no catalão enveja, no castelhano envidia (ou invidia, mais usada em algumas regiões da Espanha), no francês envie, no italiano invidia. No inglês, usa-se a palavra cognata envy, assimilada pelo idioma britânico por influência franco-normanda. No alemão, usa-se o substantivo Neid, de raiz não-latina. Em todos esses idiomas, com ligeiras variantes, o sentido do termo é o mesmo, e significa a tristeza mórbida pelo bem alheio.
Desde que existe o ser humano, existe a inveja. Numa ótica religiosa, a inveja é até mesmo anterior à história humana. Por ser uma paixão de natureza intelectiva, pode ser vivida e praticada por puros espíritos, sem a necessidade de intermediação dos sentidos. Assim, já antes da Criação da Humanidade podia haver inveja entre os espíritos angélicos, e foi por inveja que Lúcifer se revoltou contra Deus (Is 14, 12-15). A inveja do diabo em relação à obra de Deus também esteve na origem do Pecado Original, tal como afirma textualmente o Livro da Sabedoria: “Deus criou o homem imortal, e o fez à sua imagem e semelhança. Mas, por inveja do demônio, entrou no mundo a morte; e experimentam-na os que são do partido dele” (Sb 2,23-25). O modo como a serpente tentou Eva, de acordo com o Gênesis, foi precisamente despertando nela um sentimento de inveja em relação a Deus, pois lhe assegurou que, se comesse do fruto proibido, ela e Adão seriam “como deuses” (“eritis sicut dii” - Gn 3,5). Consumado o Pecado Original e exilado primeiro casal para a terra, desde logo manifestou-se a inveja. Foi um sentimento de inveja que esteve na raiz do primeiro crime de morte, de Caim contra seu irmão Abel (Gn 4,1-16). E, a partir daí, a inveja sempre exerceu seu papel ao longo dos tempos, em todas as sociedades humanas.
“Na história política das nações vislumbra-se, a cada passo, a ação da inveja, quer declarada, quer subterrânea e inconfessada. Mesmo quando na base dos acontecimentos não existe a inveja, esta aparece, quase sempre, a agravar as rivalidades, a excitar os ódios, a provocar ou prolongar as guerras” - escreveu o educador português Mário Gonçalves Viana (1900-1977) no seu excelente livro A Psicologia da Inveja (Porto: Editorial Domingos Barreira, s/d, p. 132).
Ser visado e vitimado pelos invejosos é sina que persegue implacavelmente quem tem sucesso, em qualquer área de atividades. Enquanto for vivo, o vencedor sempre terá que levar consigo a incômoda companhia dos invejosos. Assim já o registrou Horácio (65-8 a.C.), em carta a seu amigo Augusto, falando de Hércules: “Quem venceu a hidra terrível e em esforço fatal submeteu monstros célebres, notou que só se vence a inveja finda a vida” (Epistula ad Augustum, 2,1 11-12).
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - É licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
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Entrevista Realizada P0R: BETO SILVA, no: “Jornal de Piracicaba”, ao Prof. Doutor Armando Alexandre dos Santos, colaborador assíduo do blogue: Luso-brasileiro e nosso amigo.
UM MONARQUISTA NA DEFESA DA CULTURA
Foto: Amanda Vieira/JP
Armando Alexandre dos Santos, paulistano de 64 anos, reside desde 2006 em Piracicaba. É jornalista profissional e professor universitário, lecionando nos cursos de graduação em História e pós-graduação em História Militar da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. Trabalhou em órgãos de imprensa no Brasil e em Portugal, graduou-se em História e em Filosofia, fez pós-graduações em Docência do Ensino Superior e em História Militar e tem doutorado na área de Filosofia e Letras. Seu currículo Lattes impressiona; impresso em corpo 12 e espaço 1.0, ocupa nada menos de 87 páginas, elencando 43 livros, 17 capítulos de livros de autoria coletiva, 65 artigos científicos e 520 artigos em jornais e revistas, afora traduções e adaptações de livros. Seus livros tratam de temas variados: História, Ciência Política, Psicologia, Religião. Na semana passada, recebeu da Câmara Municipal de São Paulo o prêmio Colar Guilherme de Almeida, como reconhecimento por seu trabalho em prol da Cultura paulista. Reside num apartamento com uma biblioteca de 10.500 volumes e numerosas obras de arte que coleciona e cataloga. É ali que grava suas aulas e escreve seus artigos semanais, publicados jornais e em blogs brasileiros e portugueses.
Professor, jornalista e escritor, como começou e como concilia as três carreiras?
Comecei como jornalista e evoluí naturalmente para a escrita de livros e o magistério superior em História. Não há nessas atividades contradição, mas complementação. O jornalista é o historiador do presente, o historiador é o jornalista do passado.
Quando e por que escolheu Piracicaba para morar e trabalhar?
Algo que me motivou a me transferir para cá foi o hino “Piracicaba, que eu adoro tanto”, que ouvi há muitos anos e se gravou na minha memória. Em 2006, estava cansado de viver em São Paulo. Vivia num apartamento barulhento, com tráfego intenso de dia e de noite, junto a uma estação do Metrô em construção, com máquinas ruidosas trabalhando a noite inteira. Já não aguentava mais. Precisava urgentemente mudar para uma cidade mais tranquila. Foi então que surgiu a oportunidade de vir para cá e lembrei-me do velho hino…
Em seu discurso na Câmara de Vereadores, ao receber o ‘Colar Guilherme de Almeida’, o senhor falou que em Piracicaba sua produção intelectual se desenvolveu muito. Houve algum fato em especial que tenha contribuído para isso?
A tranquilidade e o silêncio, sem dúvida. Minha produção intelectual aumentou e se intensificou enormemente. Resido bem no centro da cidade, no 19o. andar de um prédio, com vista para o Salto e possibilidade de assistir todas as tardes ao espetáculo do pôr do Sol. Que mais desejar?
O senhor escreveu muitos livros sobre temas diversos. Por curiosidade, qual foi o primeiro e qual o mais recente?
O primeiro livro que publiquei foi “A Legitimidade Monárquica no Brasil”, uma análise histórica e jurídica sobre a descendência de D. Pedro II; continha sete quadros genealógicos sobre as origens da Família Imperial, os primeiros elaborados no Brasil por computador; teve duas edições em 1989 e agora, 30 anos depois, foi lançada a 3ª. O mais recente foi “História e Memória Oral”, livro didático para o curso de graduação em História, escrito por encomenda da UNISUL, onde leciono.
De modo geral e em nível nacional, como o senhor avalia a produção e o consumo cultural?
Quando se fala em produção cultural, geralmente se pensa em artistas e escritores famosos. Prefiro pensar numa cultura mais de raiz, numa cultura popular que a mídia não vê nem considera, mas que existe, é autêntica e tem uma criatividade incrível. Conversei em Minas, no Nordeste e no Sul com gente analfabeta, mas com uma sabedoria e uma experiência de vida fantásticas, muitas vezes se expressando de forma poética e elaborando pensamentos de conteúdo tão rico que poderiam servir de tema a tratados de Filosofia. Comi, certa vez, à beira do Rio S. Francisco, uma moqueca de surubim deliciosa, digna de receber medalha de ouro em qualquer concurso internacional de alta gastronomia. Eu estava com um amigo, e lembro que quisemos cumprimentar o cozinheiro. Para nosso espanto, soubemos que quem havia produzido aquela verdadeira obra de arte culinária era uma menina negrinha, de 14 para15 anos de idade! Isso é alta cultura, embora não receba o reconhecimento público que mereceria receber.
A tecnologia, em sua opinião, contribui com a cultura? De que maneira?
Pode contribuir, porque facilita a pesquisa e evita muitos procedimentos repetitivos e cansativos, mas pode também limitar, na medida em que favorece a produção em série, menos personalizada e, portanto, menos criativa.
Como avalia o tratamento do Governo Federal às questões culturais do País? O que o fim do MinC representa para a sociedade brasileira? Nesta semana, ex-ministros da Cultura assinaram uma carta com críticas ao Governo Federal; o senhor assinaria este documento?
Não assinaria, porque ele exagera as consequências da extinção do MinC, como se a cultura brasileira dependesse da existência formal de um ministério próprio. De fato, o Presidente Bolsonaro apenas reduziu o status do MinC, que passou a ser uma Secretaria do Ministério da Cidadania. Nas últimas décadas, multiplicaram-se excessivamente os ministérios, com estruturas gigantescas e milhares de empregos desnecessários. O resultado foi uma gigantesca, caríssima e inoperante máquina estatal, que o atual presidente procura reduzir a proporções mais razoáveis e adequadas à realidade. É normal que enfrente críticas, tanto de pessoas prejudicadas pelo “enxugamento”, como de setores políticos ou ideológicos não afinados com ele.
Há alguma função ou atividade que o senhor ainda pretenda exercer?
Ainda gostaria de fazer o curso de Direito. Gosto muito do Direito, sou praticamente o único não-advogado da minha família e tenho “cabeça jurídica”, segundo me dizem amigos advogados. E gostaria de organizar um curso universitário de especialização em Genealogia. Na Argentina e em vários países da Europa há cursos universitários regulares de Genealogia, mas no Brasil não existe nenhum. Acredito que uma pós-graduação em Genealogia, por EAD, teria grande número de interessados. Já tenho o projeto feito, falta apenas uma universidade decidida a investir.
Como avalia o tratamento dado à Cultura em Piracicaba?
Penso que o que deveríamos visar é que Piracicaba volte a ser plenamente a “Atenas Paulista” que foi no passado. Ainda hoje, apesar da decadência geral, Piracicaba se destaca, em termos de cultura, quando comparada com outras cidades. Infelizmente, prevalece no Brasil a ideia de que cultura é algo supérfluo e em qualquer corte de gastos, o primeiro item que se corta é o da cultura. Em Portugal, a Constituição determina a porcentagem fixa dos impostos destinada à Cultura, sem depender de vontade política e sem poder ser desviada para outros fins. É um exemplo a ser seguido.
Já pensou em seguir a carreira política? Politicamente, como se define?
Não tenho habilidade nem interesse em seguir carreira política. Minha área de trabalho é a cultural. Quanto à minha posição pessoal, posso dizer que sou politicamente bem incorreto… Sou conservador e francamente de direita. Economicamente, a favor da propriedade privada, da livre iniciativa e da função meramente subsidiária do Estado. Nunca me filiei a nenhum partido político, embora no plebiscito de 1993, no âmbito de uma Política extrapartidária e com “P” maiúsculo, me tenha empenhado na campanha monarquista. Até escrevi, naquele contexto, alguns livros que se tornaram obras de referência para os simpatizantes de uma solução monárquica para o Brasil.
Há muitos monarquistas em Piracicaba? O senhor considera a monarquia uma opção viável para o Brasil?
Em Piracicaba, o Círculo Monárquico Barão de Rezende reúne grande número de jovens idealistas e trabalhadores que dão muita esperança. No próximo dia 13 será aqui realizado o 1º. Encontro Monárquico-Cultural de Piracicaba, com a presença do Príncipe D. Bertrand de Orleans e Bragança. Deverei falar nesse encontro. Na verdade, a monarquia, longe de ser uma forma de governo arcaica e ultrapassada é moderníssima e de grande maleabilidade. Muitos a criticam por puro preconceito ou por desconhecimento, mas ela é, a meu ver, um caminho viável para o Brasil atual. Pode parecer um sonho, mas, como escreveu Fernando Pessoa, “Deus quer, o homem sonha e a obra nasce”. Por outro lado, se a monarquia parece um sonho, a república que temos, sem dúvida, é um pesadelo.
BETO SILVA
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