A obra de Raimundo Lúlio (1232-1316), estrela de primeiríssima grandeza da cultura e da língua catalã, venerado como Beato na Catalunha e também nas casas mantidas por religiosos franciscanos de todo o mundo. é muito extensa e diversificada. Escreveu mais de 250 obras, em latim, catalão ou árabe, em prosa e em verso, sobre Filosofia, Teologia, Ciências e Literatura. Sua cultura era verdadeiramente universal e enciclopédica.
Lúlio conhecia bem a vida de corte, porque frequentou a de Jaime I, rei de Aragão, e foi preceptor de um dos seus filhos. Uma curiosa alegoria da vida cortesã foi feita no opúsculo que escreveu, sob o título Llibre de les Bèsties. (RAIMUNDO LÚLIO. Livro das Bestas. Tradução de Ricardo da Costa e Grupo de Pesquisas Medievais da UFES I. São Paulo: Escala, 2006). Trata-se de uma curiosíssima alegoria em que descreve a corte do rei Leão, cercado de animais que representam e simbolizam os vários tipos de áulicos que gravitam nas cortes em torno dos soberanos. Os usos e abusos, os costumes e os vícios, até mesmo as fórmulas de tratamento e cortesia dos palácios reais são graciosamente atribuídos aos personagens figurantes. Nem a pessoa do soberano, com suas fraquezas e quedas morais (por exemplo, o adultério com a bela Dona Leoparda, a mulher do seu leal servidor Leopardo) é poupada. Todos têm seus vícios, suas fraquezas e suas idiossincrasias expostas de modo vivo, em um texto de leitura muito agradável.
A inveja, que tão assiduamente marca presença nas cortes dos grandes da terra, é claro que não podia estar ausente. O elefante conta, a certa altura, a Dona Raposa, uma história acontecida na sociedade dos humanos, de um monarca que tinha dois pajens, um dos quais invejava o outro e foi, por isso, castigado exemplarmente. Um deles, certo dia notou que no manto real, confeccionado com alvíssima seda, ousara pousar uma pulga; aproximou-se com respeito do monarca e, depois de ter pedido sua licença, livrou-o da incômoda companhia do inseto. O rei achou graça no episódio e recompensou o pajem com cem moedas. O outro pajem, com inveja do primeiro, quis repetir o feito e, de propósito, colocou sobre o manto real um enorme piolho, na esperança de que, sendo o piolho bem maior do que a pulga, a recompensa que receberia seria proporcionalmente maior. Mas o tiro lhe saiu pela culatra, pois quando mostrou ao rei o enorme piolho que estava sobre sua vestimenta, o rei se indignou por ele, pajem, ter sido tão desleixado a ponto de não ter antes tirado aquele bicho. E mandou dar-lhe cem chibatadas.
No mesmo opúsculo, são ainda narradas as consequências da inveja da Onça em relação ao Leopardo. Foram ambos os nobres felinos despachados como embaixadores, para visitar o rei dos homens. Levavam, como presentes do rei dos animais para o seu colega humano, o Cão e o Gato, dois animais que os homens muito apreciam. Na corte humana, depois de longa espera, afinal conseguiram os mensageiros ser admitidos à presença do rei, que os recebeu de modo desigual: “Quando os mensageiros estiveram diante do rei, ele honrou mais o Leopardo que a Onça, dirigindo-lhe um olhar mais prazeroso e fazendo-o sentar mais próximo de si que a Onça. A Onça teve inveja disso e ficou irada com o rei, porque acreditava que ele a devia honrar tanto ou mais que o Leopardo.” (op. cit, p. 70).
As consequências dessa inveja são expostas ao longo de vários capítulos. Enquanto estavam ausentes os dois embaixadores, Dona Raposa, que não gostava do Leopardo, insinuara-se junto ao rei Leão e lhe facilitara o acesso a Dona Leoparda. Encantado com a beleza da felina, o rei a tomou como amante, coisa que logo se espalhou nos mexericos da corte e acabou por chegar aos ouvidos do marido traído. Este, quando tomou conhecimento da traição que lhe fazia o soberano ao qual sempre servira com lealdade, indignou-se, acusou-o de traição e o desafiou para um duelo. Um rei, entretanto, somente poderia aceitar combate singular com outro rei, de modo que foi preciso que outro animal o representasse no duelo. Apresentou-se a Onça, movida pela inveja que desde o episódio da audiência com o rei dos homens a atormentava. Fez-se o combate, o Leopardo matou a Onça, mas ficou extenuado com o esforço da luta. Ao final, o rei, traiçoeiramente atacou o Leopardo, que já não teve forças para resistir e morreu. O Leão, porém, também se viu castigado pela vilania que cometera, pois perdeu a sabedoria e a sutileza de espírito, atributos próprios dos monarcas: “Depois de o Leão ter pecado e matado o Leopardo, não teve mais tanta sutileza nem engenho como tivera antes...” (p. 78).
Todos esses acontecimentos, narrados no mundo da alegoria, não podiam deixar de ser aplicados, no tempo em que foram escritos, a personagens reais, no duplo sentido do termo: reais porque realmente existentes e reais porque se referiam a reis de verdade.
A obra pode ter tido caráter pedagógico, como realça o texto introdutório da edição aqui utilizada, assinado por Esteve Jaulent: “Talvez a intenção inicial de Lúlio fosse escrever um manual para os príncipes, que resumisse as qualidades que o governante deve possuir, e as precauções que deve tomar, para exercer com sucesso o seu poder. As palavras com que o livro termina permitem esta suposição: Assim acaba o Livro das Bestas, que Félix levou ao Rei. A crítica concorda em que este Rei é Felipe IV da França, para que ele, olhando o que fazem os animais, visse como deve reinar e como pode guardar-se dos maus conselhos e dos homens falsos.” (op. cit., p. 12-13).
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - É licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
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