Nos artigos anteriores tratamos da memória como algo pessoal e individual, mas devemos ter em vista que a memória pode também ser compartilhada por grupos humanos maiores ou menores, como famílias, associações, grupos profissionais, até mesmo nações inteiras.
O mecanismo ativador desse compartilhamento pode ser escrito, mas com maior frequência se dá pelas vias da oralidade.
É de boca a ouvido que na maioria das vezes se transmitem recordações, boas ou más, que tendem a se perpetuar em determinado grupo humano. Toda família compartilha suas recordações, e às vezes de modo implícito há até mesmo “pactos de silêncio” sobre certos assuntos-tabu que não podem ser tratados, porque evocam recordações desagradáveis, as quais se desejaria esquecer. É a esse tipo de assuntos que se refere o ditado popular “não se fala de corda em casa de enforcado”.
O compartilhamento de recordações coletivas tem enorme importância para um grupo minoritário conservar sua própria identidade e afirmar-se como tal, sem se dissolver numa sociedade maior no contexto da qual está inserido. Minorias étnicas, religiosas, profissionais etc. cultivam essas memórias coletivas como mecanismo de defesa e por necessidade de sobrevivência.
Na sociedade europeia dos séculos XVI, XVII e XVIII, existia um costume curioso. Como havia pena de morte, a profissão de carrasco era como outra qualquer, mas havia um sentimento difuso de horror em relação a ela. Por isso, dificilmente o filho de um carrasco conseguiria casar, a não ser com a filha de outro carrasco. Com isso, estabeleciam-se verdadeiros grupos familiares de carrascos, verdadeiras redes que se estendiam no espaço por províncias inteiras e, no tempo, por várias gerações. A mais célebre das famílias de carrascos foi, sem dúvida a família Sanson, que forneceu carrascos à França, durante mais de 100 anos. Em grupos assim fechados, era normal que se desenvolvesse um conjunto de recordações e memórias compartilhadas.
Algo parecido se dava com profissões que, no passado, eram consideradas pouco honrosas, como por exemplo a de atores e atrizes de teatro ou de circo. Constituíam-se verdadeiras dinastias teatrais ou circenses, cada qual com seu conjunto de recordações compartilhadas, atuando à maneira de reforço da identidade daquele grupo minoritário e colocado à margem do conjunto da sociedade.
O senso de identidade profundo do povo judeu, assim como o dos ciganos, pode ser explicado pelo compartilhamento de sua memória coletiva. Sem tal compartilhamento, forçosamente se teriam rompido os elos culturais que, milênios a fio, conservaram-se tão vivos e resistiram a tantas perseguições.
No século XVI, os primeiros missionários católicos chegaram ao Japão e iniciaram sua pregação, alcançando um sucesso muito grande, com numerosas conversões. No final desse mesmo século, entretanto, o cristianismo foi proibido no Japão, sendo os católicos punidos com pena de morte. Durante mais de 200 anos foi proibida a prática religiosa cristã no Império nipônico, de modo que parecia definitivamente extinta. No final do século XIX, porém, na chamada Era Meiji, ocorreu a reabertura cultural do Japão para o Ocidente; foi então permitido o ingresso de missionários europeus e, para espanto desses, descobriram numerosas famílias que haviam conservado sua fé oculta, mas viva, durante gerações inteiras. Como o conseguiram? Obviamente, por meio das memórias compartilhadas e transmitidas pelas vias da oralidade.
O mesmo ocorreu em Portugal e na Espanha com famílias marranas, de origem judaica que, ocultamente, conservaram sua fé ancestral e mantiveram secretamente seus cultos durante séculos, até reassumirem, já no século XX, sua condição explícita de judeus.
A força da memória compartilhada, sobretudo em grupos minoritários que resistem a fatores externos contrários, é realmente muito grande.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras e professor da Unisul. Também é Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
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