Escrevo no dia 16, ainda sob o choque da notícia do terrível incêndio ocorrido ontem na Catedral de Notre-Dame. Sinto-me um pouquinho aliviado pelo fato de a destruição não ter sido total, como aconteceu há sete meses no Rio de Janeiro com o Palácio da Quinta da Boa Vista - onde em tempos melhores de nossa história habitaram os Imperadores D. Pedro I e D. Pedro II, e onde mais recentemente, a partir do considerável patrimônio arqueológico trazido de Nápoles pela Imperatriz D. Teresa Cristina, se instalara o Museu Nacional.
Graças à intervenção imediata e intensiva dos bombeiros parisienses, foi preservada a estrutura de pedra da catedral e (pormenor de grande alcance simbólico) foi preservada a lindíssima imagem de Nossa Senhora de Paris - verdadeira obra de arte que, independente do edifício, já por si valia uma ida à França somente para conhecê-la e venerá-la.
A comoção foi imensa, não só na França e na Europa, mas no mundo inteiro. Em poucas horas, contribuições que somam quase meio bilhão de euros foram ofertadas por pessoas ou entidades de muitos países, dispostas a colaborar para a reconstrução da catedral. Confesso que não me impressionaram as propaladas doações de grandes grupos econômicos, como o da grife Gucci, que ofereceu 100 milhões de euros, e o do seu rival Louis Vuiton, que não quis ficar atrás e logo declarou dar o dobro. O que me impressionaram foram as doações menores, de grande significado, verdadeiros “óbolos da viúva”. Por exemplo, o da cidade húngara de Szeged, que teve o lindo gesto de oferecer 10 mil euros, recordando, com gratidão, que no passado também fora beneficiada pela cidade de Paris: "Paris forneceu ajuda para reconstruir Szeged depois de sua grande inundação; agora Szeged ajuda Paris", informou comunicado oficial da municipalidade. Essa inundação ocorreu no dia 12 de março de 1879, quando o rio Tisza transbordou e, com a violência das suas águas, praticamente arrasou Szeged, destruindo a maior parte de suas casas e matando mais de 150 pessoas. Na ocasião, Paris, Viena e Londres coletaram fundos e enviaram ajuda para a cidade ser reconstruída. Agora, 140 anos depois, o gesto é retribuído com igual nobreza.
Não foi a primeira vez que a catedral parisiense, edificada em pleno Medievo há mais de 800 anos, esteve ameaçada de destruição. Creio já ter comentado nesta coluna que, no final do Ancien Régime, a Idade Média estava tão desprestigiada que no conselho do Rei Luís XVI chegou a ser decidida a destruição da Catedral de Notre Dame, para no seu lugar ser erigido um novo templo, em estilo grego.
A magnífica catedral medieval envergonhava os franceses de fins do século XVIII, porque significava uma recordação dos tempos supostamente bárbaros, pouco cultos e tenebrosos da Idade Média. Se não tivesse ocorrido a Revolução Francesa, provavelmente não teria sido conservada, bem no coração de Paris, a catedral maravilhosa que até anteontem atraía turistas do mundo inteiro, mas teríamos, em seu lugar, uma postiça ampliação do Parthenon, uma extemporânea Madeleine aumentada em tamanho.
No início do século XIX, já na atmosfera do Romantismo, retornou o gosto pelo passado medieval. A Idade Média voltou a estar “na moda”. Começaram a proliferar romances como os de Walter Scott (Ivanhoe é o mais famoso deles), Victor Hugo (Notre Dame de Paris) e, um pouco mais tarde, Alexandre Herculano (Eurico o Presbítero, O Bobo, O Monge de Cister. Lendas e Narrativas). As óperas do século XIX deram, também, enorme realce a temas medievais. Na Arquitetura, revalorizou-se o gótico. Notre Dame não somente foi poupada, mas foi até concluída no século XIX, por Viollet-le-Duc, construtor de sua famosa agulha que antes não tinha chegado a ser completada. Precisamente a agulha que ontem todos vimos, em vídeo, ruir fragorosamente.
O presidente Emmanuel Macron declarou que é ponto de honra para a França de hoje restaurar do modo mais rápido possível a Catedral, e prometeu não poupar esforços e recursos para atingir esse objetivo.
Se realmente cumprir sua promessa, paradoxalmente terá sido salva pela república laica de hoje, herdeira e continuadora dos sanguinários revolucionários de 1789, a relíquia magnífica da França cristianíssima e monárquica de outrora, que se orgulhava de ser “a filha primogênita da Igreja” e igualmente se ufanava da longa série de reis “qui ont fait la France”. Ironias da História...
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras e professor da Unisul. Também é Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
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