Existe uma tendência natural para que os grupos humanos - e até mesmo as pessoas individuais - assentem seu domínio sobre uma área física. Pode ser um território nacional, um Estado propriamente dito, como também pode ser um clube, um sítio de fim de semana, uma casa, um escritório, um “espaço gourmet”, até mesmo um mero “cantinho” dentro de casa. Mas é sempre um lugar, físico, concreto, que constitui um “território” psicológico do grupo ou da pessoa, conferindo uma agradável sensação de soberania, de plenitude de liberdade, de autossuficiência e segurança.
Lembro de ter lido na obra clássica “A cidade antiga”, de Fustel de Coulanges, que quando um grego saía de sua terra natal e embarcava rumo a qualquer outro ponto da bacia do Mediterrâneo, para fundar novas colônias da “Magna Grécia”, costumava levar um vasinho com terra do seu local de origem, para enterrá-lo nos fundamentos da nova povoação que iria estabelecer alhures. Simbolicamente, a terra do local de origem continha as cinzas dos seus antepassados; levar um pouco daquela terra significava estender até o novo lar a mesma continuidade com seu passado ancestral.
Sou de família portuguesa, muito tradicional e observante dos nossos costumes ancestrais em tudo, até mesmo na alimentação. Éramos camponeses do Norte de Portugal transplantados para São Paulo... Nossa casa era, psicologicamente falando, “território português”. Cheguei a conhecer a aldeia em que meu pai nasceu em 1913, há mais de um século. Cheguei a conversar com uma velhinha que, quando menina, meu pai carregou no colo. Tenho em casa uma miniatura, feita de barro, da casinha de pedra em que, durante mais de 300 anos, morou nossa família. Foi-me enviada por uma prima que ainda tem casa ao lado da nossa aldeia. Coloquei essa miniatura dentro de uma armação de vidro, no meu apartamento. Dentro da miniatura, instalei um vasinho com um pouco de terra que trouxe da aldeia. Fiz exatamente o mesmo que faziam os gregos da Antiguidade. Minhas duas irmãs têm, em seus apartamentos, miniaturas iguais, também mandadas pela nossa prima. Algo do nosso “território psicológico” está simbolizado e marca presença nesses objetos.
Convivi muito, desde a infância, com realidades culturais diferentes de colegas e amigos que tinham, igualmente, seus “territórios”, com costumes próprios que faziam lei e todos, nas respectivas comunidades, observavam. Convivi com famílias italianas, de regiões diferentes da Itália. Os “baresi”, provenientes de Bari, no extremo Sul da Itália (com os quais se aparenta meu bom amigo e colega João Umberto Nassif), eram completamente diferentes dos napolitanos, dos romanos ou dos vênetos, na comida, nos costumes, na fala, até mesmo na filosofia de vida. Convivi muito com um tio por afinidade, florentino, da região Centro-Norte da Itália, completamente diferente de todos os demais italianos.
Tive colegas sírios e frequentei muito suas casas, seus ambientes e seus clubes. Entrei dentro de sua cultura, de seu modo de ser, e cheguei a sentir profundas afinidades com eles, que viviam em um ambiente tão diferente do meu. Até hoje, a comida árabe é uma das minhas prediletas. Também os sírio-libaneses tinham seus “territórios” e exigiam respeito. Igualmente convivi com judeus, com japoneses, com gregos e com alemães. Todos com os seus costumes, suas regras de conduta, seus “territórios”.
Compreender e saber respeitar essa legítima variedade é indispensável para um professor. Cada aluno, numa sala de aula, traz consigo uma bagagem cultural que, ainda que subconscientemente, constitui seu “território” próprio. Constitui gravíssima ofensa ultrapassar os limites da individualidade. Isso é regra básica do convívio social e, para um professor, é obrigação sacratíssima, tanto mais que, pela diferença de condições e de idades, o aluno se sente como “parte mais fraca” nesse relacionamento. Se não tiver muito senso, facilmente o docente pode fazer, em relação ao discente, uma violência terrível, sem se dar conta disso.
Já tenho visto professores zombarem abusivamente e sem qualquer direito, das crenças religiosas de alunos. Isso é inadmissível. Pode-se não concordar, mas é preciso respeitar. O mundo das crenças faz parte do “território” soberano e inviolável do outro.
Para um professor, é muito importante tentar entender cada aluno, nas suas peculiaridades, nas suas idiossincrasias, nas suas crenças, nos seus critérios valorativos. É preciso intuir - no sentido etimológico do termo, ou seja, entrar dentro de - o interior de cada um, com respeito, com real vontade de compreender e ajudar. Muitas vezes, isso é difícil, mas quando um docente consegue adquirir o costume de proceder assim, tesouros surpreendentes se revelam a cada momento. É por isso que sempre digo que numa sala de aula os bons professores aprendem muito mais do que ensinam.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
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