Fiquei sabendo que existe, e tende a ser cada vez mais valorizada, a profissão (sic) dos “personal friends”, pessoas contratadas para fingir que são amigos. Acompanham quem os contratou em visitas, passeios, sessões de teatro, atividades esportivas, conversam, debatem assuntos culturais, jogam cartas etc. etc. Fazem tudo o que um amigo faz, mas atuam profissionalmente. E, é claro, cobram por hora de “serviço”.
O trabalho só tem início depois de assinado um contrato, no qual são estipuladas as condições da prestação de serviço e no qual, também, fica claro que não há, no relacionamento entre contratante e contratado, nenhuma natureza sexual. Não se trata, pois, de prostituição disfarçada. Também não vale alegar, após algum tempo de “amizade pessoal”, que houve “relacionamento estável”, com as consequências jurídicas de tal condição.
No seu portfólio de propaganda, o “personal friend” inclui, entre outros elementos, seu currículo universitário, as línguas que fala, os temas que domina, os seus gostos culturais e artísticos, suas preferências culinárias - tudo de modo a poder, o interessado em seus serviços, avaliar se encontrará nele, realmente, um “personal friend” com o perfil desejado.
Confesso que foi de espanto minha primeira reação quando tomei conhecimento da existência dessa nova profissão. Nunca podia imaginar que amizade fosse mercadoria passível de ser comercializada. Sempre entendi que a amizade – assim como o amor – ou se dá de graça ou não existe. O sexo pode até ser objeto de comércio, mas o verdadeiro amor não se vende nem se compra.
Daí minha surpresa, e quase minha indignação, diante da ideia de transformar a amizade em mercadoria comercializável. Eu jamais contrataria um “personal friend”, mesmo porque sou, graças a Deus, muito sociável e facilmente me relaciono com as outras pessoas. Creio que nunca me faltarão interlocutores, ou pelo menos assim espero...
Mas, à medida que fui refletindo, comecei a compreender a perspectiva de um infeliz (ou de uma infeliz) que precisam pagar para ter um “amigo pessoal”. E comecei a ver com outros olhos o drama desses infelizes.
Entre os instintos da natureza humana, sem dúvida o da sociabilidade é um dos mais vigorosos e atuantes. O homem, segundo o velho ensinamento de Platão e Aristóteles, é um ser racional e social, um “animal político”, sendo-lhe próprio viver em sociedade e relacionando-se com seus semelhantes. A solidão e o isolamento fazem sofrer enormemente o homem ou a mulher. “Ai de quem está só!” – diz a Bíblia Sagrada.
O instinto de sociabilidade é algo tão entranhado na vida humana que, nas prisões, a pior situação não é a de quem está trancafiado numa cela superlotada, na companhia de criminosos violentos, mas é precisamente a de quem está sozinho, na famosa e terrível “solitária”.
A Marinha brasileira remunera muito bem os guardas de farol, profissionais contratados para acender os faróis, ao cair da tarde, e apagá-los quando amanhece. É um trabalho simples, leve e muito bem pago, mas tem o ônus de exigir um isolamento total. Os candidatos se apresentam em grande número, e logo após os primeiros dias desistem quase todos, porque não aguentam a solidão e receiam enlouquecer. O resultado é que estão sempre em falta os guardiães de farol.
Ora, as condições da vida moderna fazem com que as pessoas, ainda que vivendo em cidades de milhões de habitantes, muitas vezes se sintam mais isoladas do que um guardião de farol ou do que um Robinson Crusoe na sua ilha.
Famílias desunidas, relações sociais e econômicas conflituosas, anonimato e indiferença nas multidões, falta de calor humano – tudo isso é antinatural e faz sofrer. Quantas doenças mentais e até mesmo suicídios não têm aí sua origem!
Neste mundo globalizado, mercantilista e hiper-tecnologizado em que vivemos, os indivíduos se sentem indefesos e desprotegidos diante de forças macroeconômicas que dirigem e condicionam sua vida, diante de um Estado cada vez mais onipotente e invasivo da sua privacidade, diante de fatores que ele não é capaz de controlar e nem sequer de compreender inteiramente. No passado, quando a vida familiar e associativa era mais intensa, havia uma série de mecanismos de sustentação psicológica que hoje, infelizmente, não mais atuam.
Nessas condições, como estranhar que, à falta de alternativas válidas, se recorra a “personal friends” pagos comercialmente, para atenuar ao menos um pouquinho a solidão? É um paliativo, bem sei, mas pode representar um alívio considerável para muita gente.
Armando Alexandre dos Santos - é historiador, jornalista profissional e ex-diretor da Revista da Academia Piracicabana de Letras.
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