Costuma-se repetir, nas mais diversas circunstâncias, o famoso dito italiano “tradutori, traditori”, que significa que os tradutores são traidores. De fato, o exercício da tradução fiel é algo extremamente difícil. Com muita facilidade o pensamento original do autor é traído, inadvertidamente ou de caso pensado, por quem o traduz para outro idioma.
Tive ainda recentemente um exemplo de uma traição dessas, comparando dois textos – o original francês com a tradução brasileira – das memórias da Condessa de Paris, a neta mais velha da Princesa Isabel.
Leiamos primeiramente o texto brasileiro, na tradução de Vera Mourão, falando da Princesa Isabel e de seu esposo, o Conde d´Eu: “Sempre vi meus avós juntos, mas jamais os vi conversar ou discutir: moravam no mesmo apartamento, aparentavam ser bons amigos, mas na realidade quase não se sorriam”. (De todo Coração, Francisco Alves, 1983, p. 36)
Vejamos agora o texto da Condessa de Paris, no original: “J´ai toujours vu mes grands-parents ensemble, mais je ne les ai jamais entendus parler ou discuter entre eux; ils habitaient le même appartement, avaint l´air de deux bons amis mais ils ne riaiaient vraiment pas souvent” (Tout m´est bonheur, Robbert Laffont, Paris, 1978, p. 53)
Não pretendo julgar as intenções da tradutora, claro. Mas não posso deixar de afirmar que sua tradução é muito infiel, pois altera bastante o sentido do original, dando a errônea impressão de que a Princesa Isabel e o Conde d´Eu assumiam uma atitude externa (“aparentavam”, que não é bem exatamente o mesmo que “avaient l´air”, já que no português corrente o verbo aparentar tem uma conotação de fingimento) pública de amizade, mas a realidade é que só muito raramente trocavam sorrisos entre si. A leitura do texto traduzido induz o leitor a interpretar que o velho casal mantinha uma rotina, no seu matrimônio, um tanto sofrida. De público, os dois passavam a ideia de que estava tudo normal, mas na vida privada apenas se suportavam, tão desgastado estava o seu relacionamento, a ponto de quase nem sorrirem um para o outro...
Entretanto, qualquer pessoa que saiba um pouco de francês facilmente se dá conta de que a Condessa de Paris afirmou que seus avós riam pouco, não disse que eles, entre si, quase não se sorriam, como escreveu a tradutora brasileira.
Por outro lado, Vera Mourão traduziu “pas souvent” por raramente. Parece-me que ela foi um pouco além, na escolha desse advérbio, do significado de “pas souvent”. “Pas souvent” significa não frequentemente, significa que eles não tinham o hábito de rir muito. Não significa necessariamente que só raramente riam.
Também me chamou a atenção o advérbio “vraiment”, usado pela Condessa de Paris. Parece-me que esse advérbio pode ser interpretado de dois modos: 1) na verdade, eles não riam com com frequência. 2) eles não riam de verdade (ou seja, não riam de um riso franco e solto, quase gargalhando) com frequência.
Entendo que essas duas interpretações são possíveis, não saberia qual delas deve corresponder à intenção da Condessa, ao redigir seu texto. Lembro, por fim, que existe uma diferença muito grande entre rir e sorrir. O texto francês fala em rire, não fala em sourire, como entendeu a tradutora brasileira. Uma pessoa que nunca sorria é uma aberração da natureza humana... Mas uma pessoa que não tenha o hábito de rir, conforme as circunstâncias, conforme o contexto histórico, conforme a cultura prevalente na época e no ambiente, pode ser muito mais explicável. A Rainha da Inglaterra nunca foi fotografada rindo abertamente em público, mas seu sorriso é permanente, em todas as fotos. Os Papas, normalmente não riam em público, porque se entendia que era essa uma atitude não muito condizente com a dignidade papal. Isso não impediu que dois papas do mesmo século (Pio X e João XXIII, por coincidência ambos antigos Patriarcas de Veneza), houvessem por bem romper essa norma e dessem frequentes mostras de bom humor, mesmo em público. O bom humor espontâneo e contagiante até se tornou como que “marca registrada” dos dois.
Aqui ficam estas considerações, à maneira de exemplificação de como são, facilmente, traidores... até mesmo os melhores tradutores.
RMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - é historiador, jornalista profissional e ex-diretor da Revista da Academia Piracicabana de Letras.
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