Gostaria de chamar a atenção dos leitores para o eminente papel que teve a Igreja Católica na compreensão da pessoa humana e, portanto, no embasamento teórico do que deve ser uma verdadeira ciência antropológica.
Entre os filósofos da Antiguidade, era comum a crença dualista de que, no ser humano, se digladiavam irremediavelmente dois princípios opostos, o corpo material e a alma espiritual.
Os primeiros teólogos e pensadores cristãos conheciam bem e tomaram em consideração o pensamento grego clássico, mas souberam rejeitar a dualidade corpoXespírito presente naquele pensamento. Já Santo Agostinho, rejeitando decididamente o dualismo dos maniqueus, o fez de modo muito claro, e em sua esteira seguiu a totalidade dos Padres da Igreja e dos autores cristãos em geral.
Mais tarde, São Tomás de Aquino, ao recuperar o que havia de melhor no ensinamento de Aristóteles, teve o cuidado de expurgá-lo de numerosos erros criteriológicos, entre os quais o dualismo.
Corpo e alma não se opõem, mas, juntos, integram um só ser, que é o homem, plenamente considerado. Corpo e alma só se separam - mórbida e transitoriamente - pela morte, que é um estado anormal, devido ao pecado. É uma separação mórbida, porque engendra a corrupção: sem estar informado (no sentido filosófico) pela alma, o corpo, pura matéria, rapidamente se desintegra e se faz pó. E é transitória, porque, de acordo com o dogma da Ressurreição da carne, no fim dos tempos corpos e almas voltarão a se reunir, para jamais se separarem por toda a eternidade. Depois do Juízo, tanto os justos, no Paraíso, quanto os pecadores, na Geena, terão para todo o sempre os corpos e as almas indissociavelmente unidos.
Isso é o que se depreende da famosa Teoria Hilemórfica (que trata de matéria e forma), a qual, juntamente com a noção de Ato e Potência, constitui a base da metafísica aristotélico-tomista.
Além de ter contribuído para a Antropologia pela rejeição categórica do dualismo e pela compreensão da integridade da pessoa humana, também a um outro título, de grande importância, a Igreja Católica assentou as bases para a intelecção da verdadeira Antropologia.
Na realidade, o Cristianismo foi a primeira religião de cunho mundial, que desde o seu início pretendeu atingir e conquistar toda a humanidade e, assim, inaugurou a ideia de que o gênero humano (entendido no sentido mais amplo, no espaço e no tempo) tem uma relação fraternal. É em Jesus Cristo que, pela primeira vez, a Humanidade pôde adquirir a noção de que constitui, toda ela, uma imensa fraternidade.
Até o aparecimento do Cristianismo, todas as religiões e todos os deuses eram nacionais. Mesmo entre os hebreus, a religião mosaica era entendida como algo nacional, e isso se consolidou de tal maneira que, entre os Apóstolos e os primeiros discípulos de Jesus Cristo, houve grande resistência psicológica à ideia de uma pregação aberta a todo o gênero humano, fora dos limites do Povo Eleito. Essa dificuldade, tema central subjacente aos debates ocorridos no Concílio de Jerusalém (ano 50 d.C.), fica bem patente pela leitura dos Atos dos Apóstolos.
Não havia, no passado, conflito religioso propriamente dito. Todos adoravam os deuses de sua nação e compreendiam que os outros adorassem os seus. Daí o caráter muitas vezes fragmentário, nacionalista e, também, relativista da religiosidade dos povos antigos. Daí, também, a dificuldade de os romanos entenderem os cristãos, não compreendendo porque estes teimavam em adorar a um Deus único e exclusivista, em vez de colocarem, como faziam todos, uma imagem da sua divindade no Panteão Romano, junto com todos os demais e, assim, se adequarem ao “stablishment” político-religioso do Império.
A noção de fraternidade universal (como decorrência de serem todos os homens filhos de um mesmo Deus e, assim de certa forma se irmanarem a Jesus Cristo, o Filho Unigênito de Deus) é fundamental para a compreensão da altíssima dignidade da pessoa humana.
Transcrevo a seguir um breve trecho do beneditino francês D. Próspero Guéranger (séc. XIX), no qual ele destaca um ponto muito importante para nós, historiadores: até mesmo a compreensão de uma história universal, no sentido maior, no sentido mais abrangente, somente se tornou possível a partir da ótica cristã. Antes disso, era fragmentária e, necessariamente, incompleta. Passo a transcrever:
"Os historiadores pagãos não tinham uma visão de conjunto dos acontecimentos humanos. Para eles, a ideia de pátria era tudo, de tal forma que, até no tom de narrar os fatos, nunca se nota que o narrador se sentisse tomado, ainda que de leve, pelo sentimento de afeto pela espécie humana em si mesma considerada. De fato, a história somente principiou a ser tratada em sentido abrangente e de síntese a partir do cristianismo. Por remeter continuamente o nosso pensamento para o destino sobrenatural do gênero humano, o cristianismo habituou o nosso espírito à visão universal das coisas, muito além de um nacionalismo egoístico. Foi em Jesus Cristo que a fraternidade humana se revelou; e foi a partir de Jesus Cristo que a história da humanidade, como um todo, passou a ser objeto de estudo" (Le sens chrétien de l' Histoire, Éditions d´Histoire et d´Art, Paris, 1945, pgs. 17-18).
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - é historiador e jornalista, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
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