Quando A TRIBUNA PIRACICABANA estampou, no dia 5/11/2011, um artigo meu intitulado “Como compreender a beleza literária da Bíblia”, não podia imaginar que ele viesse a ter a repercussão que teve. Era um artigo simples, singelo e sem maiores pretensões. Limitava-se a destacar a riqueza literária incomparável dos 73 livros inspirados que compõem a Bíblia, nos mais variados gêneros - épicos, líricos, místicos, históricos, jurídicos etc. - e a alertar para o fato de que a leitura deles não pode ser feita com o espírito cartesiano ou positivista ainda hoje predominante em muitos meios cultos do Ocidente. Somente a compreensão da mentalidade oriental, em cujo contexto a Bíblia foi inspirada por Deus e escrita por vários autores, permite que possamos entender convenientemente seu texto maravilhoso e sua inesgotável riqueza literária.
Esse artigo foi transcrito em numerosos sites e blogs, brasileiros e portugueses e, literalmente, correu mundo. Ainda agora, quase 3 anos decorridos, com frequência me chegam repercussões dele, dos mais diversos locais do globo.
Tenho em mãos, no momento, um estudo que trata, de modo científico e aprofundado, do mesmo tema: a riqueza literária da Bíblia. Refiro-me ao excelente livro “A Paixão de Cristo segundo Mateus – Uma abordagem literária”, do meu amigo Ricardo Boone Wotckoski, que é graduado em Letras, tem mestrado em Ciências da Religião e leciona no Centro Universitário Claretiano, de Batatais, onde também é Supervisor de Tutoria e Coordenador Pedagógico dos cursos de graduação. Esse livro, de 110 páginas, acaba de ser publicado pela Fonte Editorial, de São Paulo.
O Prof. Wotckoski apresenta a Paixão de Jesus Cristo segundo o Apóstolo São Mateus de modo bastante original, porque evita seguir dois caminhos já muito trilhados. De um lado, ele evita a leitura crítica positivista e cartesiana inspirada, por exemplo, nas obras de Renan, já bastante fora de moda em nossos dias, mas ainda tendo alguns cultores retardatários. Por outro lado, ele não faz uma leitura estritamente religiosa do texto, como o comum dos exegetas tradicionais. A dimensão religiosa dos relatos evangélicos é sem dúvida a mais importante, mas não é a única. Há outras abordagens possíveis, sendo a literária uma delas, e precisamente a que foi escolhida por meu amigo.
Depois de apresentar um embasamento teórico para sua análise, sobretudo nas obras de Erich Auerbach (1892-1957) e Robert Alter (1935-), o autor mostra que o gênero literário utilizado pelo Evangelista São Mateus se aproxima do das biografias romanas da época, assemelhando-se bastante a esse gênero, tanto na estrutura quanto nos recursos estilísticos que utiliza. Sendo predominante, no século I d. C., a cultura romana, é muito explicável que o Apóstolo se tenha servido dela para comunicar-se com o público ao qual destinava seu escrito, usando o estilo e seguindo os costumes do seu tempo. A seguir, Wotckoski passa à análise do texto bíblico, realçando sua beleza literária e sua inserção no estilo do gênero biográfico romano.
Um ponto que me chamou muito a atenção, na análise de Wotckoski, é a utilização de um “leitwort”, uma palavra-chave diversas vezes aplicada no texto, em contextos diversos, permitindo que o leitor atento tenha uma espécie de fio condutor na narrativa, de modo a captar a ideia central do texto. Esse é um recurso muito utilizado na literatura oriental e, especificamente, nos textos bíblicos, conforme fez notar o filósofo e linguista judeu Martin Buber (1878-1965). No caso concreto do Evangelho de São Mateus, segundo Wotckoski essa ideia central é a noção de entrega. De fato, o verbo entregar e o substantivo entrega são usados muitas vezes no texto: Jesus é entregue por Judas ao Sinédrio, Pilatos entrega Jesus aos seus algozes, Jesus Se entrega para resgatar o gênero humano etc.
Não é possível, nos limites deste breve artigo, expor toda a riqueza desse livro pequeno, mas cheio de conteúdo, que recomendo vivamente aos leitores.
Concluo estas breves considerações acrescentando que o Prof. Wotckoski é, também, autor de um breve, mas substancioso curso de extensão, com 60 horas de carga horária, sobre “Literatura, Religião e Cultura Ocidental”, o qual pode ser seguido pela internet, por qualquer pessoa interessada, seja qual for sua formação anterior. Eu mesmo fiz, com gosto e proveito, esse curso, anos atrás. Basta inscrever-se no site do Centro Universitário Claretiano (http://www.claretianobt.com.br/cursos/extensao/ead).
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
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