Sobre o verdadeiro alcance a as limitações das biografias, Pierre Bourdieu escreveu um texto que se tornou clássico, intitulado “A ilusão biográfica”. Quanto a autobiografias e livros de memórias, por mais sinceros e completos que procurem ser, sempre terão algo de suspeito. Eles exprimem com veracidade os indivíduos que os escreveram, ou exprimem, mais bem, a imagem que esses indivíduos formaram de si e que pode não corresponder à realidade, mesmo admitindo que eles sejam absolutamente sinceros e honestos na seleção e exposição das suas reminiscências?
Pessoas que escrevem memórias com a intenção de deixar um monumento de suas vidas – seja por razões políticas, seja por razões familiares, seja por sentirem tão-somente a necessidade de extravasarem os sentimentos e deixarem consignadas, por escrito, suas experiências pessoais – até que ponto tais pessoas não exprimem, nas memórias, uma imagem auto-idealizada, que desejam fixar no papel e deixar para os pósteros?
Até que ponto uma “biografia-autorizada”, como tantos políticos, artistas e empresários hoje em dia gostam de patrocinar, é biografia no sentido pleno e corrente do termo? Não será ela uma ficção, uma projeção mais consciente ou menos, do personagem que a autoriza?
Em última análise, todas essas questões se relacionam com o problema da memória. O mecanismo da memória, no espírito humano, é sinuoso, é muitas vezes inexplicado e inexplicável para a própria pessoa que procura recordar seu passado. É um exercício que mexe muito a fundo com as paixões, com as emoções. Normalmente, nós nos lembramos bem daquilo que despertou em nós uma paixão muito profunda, favorável ou desfavorável. É difícil esquecer algo que nos agradou profundamente, como também não é fácil esquecer algo que nos magoou, que nos feriu, que nos fez sofrer muito.
Esquecemos facilmente, isso sim, as coisas indiferentes. As coisas que não nos marcaram emocionalmente vão sendo varridas da memória e lançadas à vala comum do esquecimento. Dir-se-ia – para recordar a velha e querida Antiguidade clássica – que todos nós tomamos, a respeito das coisas indiferentes, aquela água misteriosa do rio Lethes, o rio que separava o mundo presente do inferno mitológico. As almas dos mortos atravessavam esse rio, na barca de Caronte, e sentiam muita sede. Bebiam, então, para se aliviar, a água do próprio rio, e com isso se esqueciam do seu passado. Os mortos que bebiam água do Lethes ficavam, de acordo com a mitologia grega, vazios, seres sem memória. Seriam como HDs de nossos modernos computadores, que tivessem todo o seu conteúdo deletado e fossem, ademais, reformatados... Tornavam-se aptos a, pela metempsicose, reencarnarem em animais.
Pois bem, nossas vidas são cheias de fatos maiores ou menores que esquecemos... porque nos foram indiferentes. As águas seletivas do imaginário Lethes as varreram. Para nós, individual e subjetivamente, é como se nunca tivessem existido, é como se não fizessem parte da verdade.
Verdade... Essa é uma palavra que usamos a todo momento. Mas, que significa ela? “Quid est veritas?” Que é a verdade? Foi essa a pergunta que Pilatos fez a Jesus Cristo (Jo 18,38). Para os cristãos, Deus é a Verdade, Jesus Cristo é a Verdade. “Ego sum via, veritas et vita” – Eu sou o caminho, a verdade e a vida (Jo, 14,6).
Para os gregos antigos, verdade era outra coisa. Em grego, verdade era aletheia, ou seja, não-esquecimento, era o que não tinha sido apagado pela água do Lethes.
No trabalho de seleção subconsciente do que deve e não deve ser lembrado, do que deve e não deve ser esquecido, cada um de nós é senhor de si, sem dúvida, mas somente até certo ponto. Se fôssemos senhores absolutos da nossa seleção, jamais esqueceríamos algo que nos interessasse, todos os estudantes tirariam nota 10 em todas as provas e exames... E, bem ainda maior, conseguiríamos esquecer completamente fatos que nos traumatizaram, nos feriram, nos magoaram. Só lembraríamos das coisas boas, agradáveis e úteis, sem nos preocuparmos com más recordações, com as que nos fazem sofrer e condicionam nossa felicidade.
A realidade concreta é que cada um de nós se lembra de muita coisa boa e, também, de coisas menos boas, que sinceramente, no mais íntimo de nosso ser, preferiríamos esquecer. A seleção do que ficou, nós mesmos fazemos, ao longo da vida, no plano consciente e, mais ainda, no subconsciente.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
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