PAZ - Blogue luso-brasileiro
Segunda-feira, 22 de Fevereiro de 2016
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - HIERONYMUS BOSCH E A INVEJA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jeroen van Aeken, mais conhecido pelo pseudônimo Hieronymus Bosch (1450-1516), foi um pintor e gravador flamengo que teve em seu tempo, e continua tendo até hoje, numerosos admiradores. Utilizava com frequência figuras deformadas, com forte e muitas vezes obscura carga simbólica, mesclando sonho e realidade. É considerado um precursor do surrealismo moderno.

Somente se conservam, atualmente, cerca de 40 obras originais de Bosch, espalhadas em museus de vários países. No Museu do Prado, em Madri, encontra-se uma pintura a óleo sobre madeira, de 120x150cm, conhecida como “Os sete pecados capitais”. Bosch pintou-a entre 1475 e 1480, no início de sua carreira, numa fase que se poderia chamar, um tanto impropriamente, mais “realista” e menos “surrealista”. É uma obra que se tornou muito famosa porque o rei Felipe II, da Espanha, a adquiriu e a quis colocar nos aposentos reais do Escorial, para tê-la continuamente diante dos olhos, como objeto de meditação diária.

É constituída por cinco medalhões, dos quais o central e maior representa o olho de Deus, que tudo vê, com a inscrição latina “CAVE CAVE DOMINUS VIDET” (Presta muita atenção, pois o Senhor te vê). Em torno da pupila, na íris, estão distribuídos em quadros menores os sete pecados capitais. Nos medalhões dos quatro ângulos, figuram os quatro Novíssimos, ou seja, as últimas coisas que com certeza estão no caminho da passagem de cada homem pela terra: a Morte, o Juízo, o Inferno e o Paraíso. Duas faixas, uma no alto, outra em baixo, reproduzem, no latim da Vulgata, textos bíblicos extraídos do Deuteronômio e alusivos aos Novíssimos: “Gens absque consilio est et sine prudentia. Utinam saperent et intellegerent haec ac novissima sua providerent!” (São pessoas desprovidas de discernimento e sem prudência. Oxalá tivessem sabedoria e entendessem o fim que as espera – Deut. 32, 28-29) e “Abscondam faciem meam ab eis et considerabo novissima eorum” (Esconderei deles a minha face e considerarei o fim que terão – Deut. 32, 20).

Concentremo-nos agora numa das representações que cercam o olho central, dedicada à Inveja: no lado esquerdo, vê-se um homem ainda moço que oferece uma flor a uma jovem, que está numa janela. A jovem, em vez de olhar o presente que lhe está sendo oferecido, ou mirar quem o oferecia, parece ter os olhos fixados na bolsa de dinheiro que o ofertante leva à cintura. Na janela ao lado, mais no centro da cena, um homem, aparentemente um rico burguês, contempla com inveja um nobre elegante, cavaleiro reconhecível pelas esporas, que leva consigo uma ave de caça e junto ao qual um plebeu, colocado ao seu serviço, carrega um pesado fardo. Ao lado do burguês, sua esposa olha para fora com olhar enviesado e, aparentemente, troca com o marido comentários malevolentes sobre a vida alheia, talvez criticando o nobre, talvez falando sobre o jovem que, na janela ao lado, corteja a filha do casal. O nobre, por sua vez, parece estar olhando para o jovem namorado, talvez por lhe invejar a juventude e a maior capacidade de atrair a donzela. E o rosto do plebeu, que se consegue vislumbrar com a ampliação da imagem, também está voltado para trás, aparentemente considerando com inveja a condição superior das pessoas pelas quais passou. O elemento mais curioso da cena é o conjunto dos dois cães, que têm cada qual um osso à sua frente, à sua disposição, mas em vez de se contentarem ambos com o que lhes pertence, preferem olhar invejosamente o outro osso, que está na mão do burguês. É bem essa a característica do invejoso, que se atormenta por não ter um bem alheio e se torna incapaz de fruir o bem que já está ao seu alcance. O fato de o burguês ter na mão um osso talvez signifique tratar-se de um agiota, acostumado a roer até os ossos dos infelizes que explora. A intenção do pintor parece ter sido mostrar como a inveja permeia todas as relações sociais, abrangendo homens e mulheres de todas as condições... e chega até mesmo aos animais!

Infelizmente, não é possível reproduzir aqui a imagem de “Os sete pecados capitais”. Somente uma ampliação em cores muito grande, que tomaria quase toda a página deste jornal, permitiria apreciar a riqueza extraordinária de pormenores. Sugiro que o leitor interessado procure, no sistema Google de imagens, “Bosch Seven Deadly Sins”, e encontrará muitas dezenas de boas reproduções. Se quiser ter acesso, especificamente, ao detalhe da Inveja, basta procurar por “Bosch Envy”, e igualmente disporá de abundante material de estudo, pesquisa e agradável entretenimento.

 

 

ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.



publicado por Luso-brasileiro às 12:15
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
arquivos

Julho 2024

Maio 2024

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Julho 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

favoritos

JOÃO CARLOS JOSÉ MARTINEL...

pesquisar
 
links