Jeroen van Aeken, mais conhecido pelo pseudônimo Hieronymus Bosch (1450-1516), foi um pintor e gravador flamengo que teve em seu tempo, e continua tendo até hoje, numerosos admiradores. Utilizava com frequência figuras deformadas, com forte e muitas vezes obscura carga simbólica, mesclando sonho e realidade. É considerado um precursor do surrealismo moderno.
Somente se conservam, atualmente, cerca de 40 obras originais de Bosch, espalhadas em museus de vários países. No Museu do Prado, em Madri, encontra-se uma pintura a óleo sobre madeira, de 120x150cm, conhecida como “Os sete pecados capitais”. Bosch pintou-a entre 1475 e 1480, no início de sua carreira, numa fase que se poderia chamar, um tanto impropriamente, mais “realista” e menos “surrealista”. É uma obra que se tornou muito famosa porque o rei Felipe II, da Espanha, a adquiriu e a quis colocar nos aposentos reais do Escorial, para tê-la continuamente diante dos olhos, como objeto de meditação diária.
É constituída por cinco medalhões, dos quais o central e maior representa o olho de Deus, que tudo vê, com a inscrição latina “CAVE CAVE DOMINUS VIDET” (Presta muita atenção, pois o Senhor te vê). Em torno da pupila, na íris, estão distribuídos em quadros menores os sete pecados capitais. Nos medalhões dos quatro ângulos, figuram os quatro Novíssimos, ou seja, as últimas coisas que com certeza estão no caminho da passagem de cada homem pela terra: a Morte, o Juízo, o Inferno e o Paraíso. Duas faixas, uma no alto, outra em baixo, reproduzem, no latim da Vulgata, textos bíblicos extraídos do Deuteronômio e alusivos aos Novíssimos: “Gens absque consilio est et sine prudentia. Utinam saperent et intellegerent haec ac novissima sua providerent!” (São pessoas desprovidas de discernimento e sem prudência. Oxalá tivessem sabedoria e entendessem o fim que as espera – Deut. 32, 28-29) e “Abscondam faciem meam ab eis et considerabo novissima eorum” (Esconderei deles a minha face e considerarei o fim que terão – Deut. 32, 20).
Concentremo-nos agora numa das representações que cercam o olho central, dedicada à Inveja: no lado esquerdo, vê-se um homem ainda moço que oferece uma flor a uma jovem, que está numa janela. A jovem, em vez de olhar o presente que lhe está sendo oferecido, ou mirar quem o oferecia, parece ter os olhos fixados na bolsa de dinheiro que o ofertante leva à cintura. Na janela ao lado, mais no centro da cena, um homem, aparentemente um rico burguês, contempla com inveja um nobre elegante, cavaleiro reconhecível pelas esporas, que leva consigo uma ave de caça e junto ao qual um plebeu, colocado ao seu serviço, carrega um pesado fardo. Ao lado do burguês, sua esposa olha para fora com olhar enviesado e, aparentemente, troca com o marido comentários malevolentes sobre a vida alheia, talvez criticando o nobre, talvez falando sobre o jovem que, na janela ao lado, corteja a filha do casal. O nobre, por sua vez, parece estar olhando para o jovem namorado, talvez por lhe invejar a juventude e a maior capacidade de atrair a donzela. E o rosto do plebeu, que se consegue vislumbrar com a ampliação da imagem, também está voltado para trás, aparentemente considerando com inveja a condição superior das pessoas pelas quais passou. O elemento mais curioso da cena é o conjunto dos dois cães, que têm cada qual um osso à sua frente, à sua disposição, mas em vez de se contentarem ambos com o que lhes pertence, preferem olhar invejosamente o outro osso, que está na mão do burguês. É bem essa a característica do invejoso, que se atormenta por não ter um bem alheio e se torna incapaz de fruir o bem que já está ao seu alcance. O fato de o burguês ter na mão um osso talvez signifique tratar-se de um agiota, acostumado a roer até os ossos dos infelizes que explora. A intenção do pintor parece ter sido mostrar como a inveja permeia todas as relações sociais, abrangendo homens e mulheres de todas as condições... e chega até mesmo aos animais!
Infelizmente, não é possível reproduzir aqui a imagem de “Os sete pecados capitais”. Somente uma ampliação em cores muito grande, que tomaria quase toda a página deste jornal, permitiria apreciar a riqueza extraordinária de pormenores. Sugiro que o leitor interessado procure, no sistema Google de imagens, “Bosch Seven Deadly Sins”, e encontrará muitas dezenas de boas reproduções. Se quiser ter acesso, especificamente, ao detalhe da Inveja, basta procurar por “Bosch Envy”, e igualmente disporá de abundante material de estudo, pesquisa e agradável entretenimento.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
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