Quando se fala em Mitologia, a primeira ideia que nos vem ao espírito é a dos deuses mitológicos da Grécia antiga, que habitavam o Olimpo e ali saboreavam ambrosia e néctar; não eram deuses puros nem imaculados, eram modelos extremados das paixões, dos vícios e até dos crimes da humanidade.
Em termos bem “tupiniquins”, imaginava Monteiro Lobato que o néctar sorvido pelos deuses era a garapa, o nosso saborosíssimo caldo de cana, e que a comida maravilhosa que degustavam era... içá torrado com farinha! Içá, para quem não sabe, é o ventre intumescido da formiga tanajura. Revoadas dessas formigas caem no solo, na época da postura, e são apanhadas para degustação. Esse era tipicamente um pitéu indígena, assimilado e incorporado pelos paulistas antigos e que somente em fins do século XIX deixou de ser consumido (embora discretamente, sem chamar muito a atenção...) pela alta sociedade de São Paulo. Ainda hoje é possível saboreá-lo em alguns restaurantes típicos do Vale do Paraíba, onde é designado como “caviar caipira”. Eu mesmo cheguei a provar essa iguaria. Confesso que não achei nela as sublimidades apontadas por Lobato, mas, francamente, é de sabor bem agradável.
A mitologia grega era cheia de ensinamentos filosóficos que envolviam os problemas mais profundos da natureza humana, os quais, mesmo nos dias de hoje, permanecem vivos e também se expressam pela via da mitologia, embora de outros modos. Mudaram-se as formas e as representações míticas, mas os problemas fundamentais permaneceram os mesmos.
Uma área do conhecimento que trabalha muito com os mitos e aprende a manipulá-los habilmente é a da propaganda. Qualquer pessoa que tenha estudado marketing sabe que, quando se oferece um produto, na realidade o que se está vendendo é uma ideia, uma sensação, um valor abstrato simbolizado e expresso por aquele produto. Um vendedor de passagens em transatlântico, por exemplo, oferece ao público essas passagens; mas o comprador, na realidade, compra o status, ou a sensação de riqueza, ou a sensação de segurança e plenitude que a viagem em transatlântico de luxo produz. Quem compra uma casa de campo, na realidade busca o conforto, a tranquilidade, o bucolismo e a paz que, simbolicamente, em sua mente se associam à casa de campo. Quem compra um automóvel do ano, na realidade procura a riqueza, a sensação de sucesso e a consideração geral que a posse do carro do ano normalmente exprime. E assim por diante.
O curioso é que os padrões vão mudando, de acordo com as modas, as tendências, os costumes, mas os grandes mitos permanecem os mesmos – precisamente porque os problemas humanos e os anseios para resolvê-los são permanentes. Um exercício interessante é pegar, em qualquer sebo, revistas da metade do século XX (por exemplo, velhas coleções de "Seleções do Reader's Digest") e analisar as propagandas de produtos anunciados, observando quais as ideias, quais os "absolutos" que estavam sendo oferecidos. Não são muitos diferentes dos de hoje. Confesso que já fiz isso muitas vezes, não só com "Seleções", mas também com revistas como "O Cruzeiro", "Manchete" e "Fatos & Fotos" dos anos 1950 ou 60. É um exercício realmente prazeroso e enriquecedor.
Outro aspecto interessante a destacar é o da cultura da beleza corporal – já cultivada desde a antiga Grécia nos modelos de Apolo e Afrodite, e ainda hoje objeto de culto constante. Atualmente, considera-se como padrão de beleza um corpo esguio. Qualquer gordurinha extra deve ser banida. Por ação ditatorial da mídia modeladora das modas esse é um modelo imposto aos homens e, sobretudo, às mulheres. Em outros tempos, era muito diferente. Quando havia escassez de alimentos, ter gorduras acumuladas era bom sinal, já que significava maior resistência às doenças infecciosas que eram frequentes e, muitas vezes, mortais. Ficava feio para uma mulher ser magrela... As gordas eram, então, prestigiadas.
Quem pesquisa em arquivos antigos encontra, por vezes, coisas muito engraçadas. Recordo um episódio ocorrido na localidade portuguesa de Vila Viçosa, no início do século XVIII. Ali ocorreu uma "troca de princesas", cerimônia que se dava quando, em decorrência de acordos políticos, eram combinados casamentos entre as dinastias de Portugal e de Espanha. Na fronteira, ou em alguma localidade próxima à fronteira, trocavam-se as princesas, geralmente meninas de 8 ou 10 anos, que iam completar sua educação no outro país, já noivas de príncipes que mais tarde herdariam as coroas de suas nações. Li o relato muito engraçado de uma troca de princesas ocorrida em Vila Viçosa. A portuguesinha que ia para Madri era gorducha, rechonchuda, como se apreciava no tempo; e a espanholinha, destinada a Lisboa, era magra, angulosa e ossuda (exatamente como se exige das modelos de nossos dias). A população local, que assistiu à troca, não gostou e começou a reclamar. Comentava que era injusto os espanhóis, sempre aproveitadores e querendo tirar vantagem em tudo, "darem uma sardinha e levarem em troca uma tainha"... Esse fato ficou registrado como sintoma de insatisfação popular com a política internacional portuguesa da época.
É curioso que o mesmo anseio da saúde e da beleza física que outrora fazia as moças desejarem ser gordas hoje as faz anoréxicas. Mudaram os paradigmas, mas o mito permanece o mesmo.
Os mitos têm relação imediata com as utopias, outro assunto que mereceria estudo e reflexão. Por trás de toda utopia está sempre um mito. Mas isso é assunto que fica para outra ocasião.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
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