Tratei, em meus dois últimos artigos, do anacronismo, erro muito comum entre os historiadores e mais comum ainda em não historiadores que se põem a escrever sobre História. Em filmes e seriados televisivos, então, campeia solto...
Hoje, tratarei do anatopismo, erro parecido com o anacronismo, mas que se diferencia dele, já que não se refere a tempo, refere-se a lugar. É uma projeção errada feita no espaço físico e não no espaço temporal; não é um erro cronológico, mas topológico.
No século XVI, alguns índios brasileiros, tupinambás, foram levados à corte da França e lá causaram, como é compreensível, enorme sensação. A partir daí, se generalizou na França, e por extensão na Europa, a ideia de que todos os habitantes do Novo Mundo vestiam-se – ou melhor, não se vestiam – exatamente como os aborígenes brasileiros. Daí aparecerem, nos mapas e nos livros europeus dos séculos XVII e XVIII, ilustrações de incas ou quetchuas, do alto da Cordilheira dos Andes, e de peles-vermelhas das gélidas áreas do Canadá, com a mesma indumentária dos índios brasileiros, ou seja, apenas com tangas. Esse é um exemplo típico de anatopismo.
Outro exemplo: num filme sobre as aparições de Fátima, produzido pelo cinema norte-americano na década de 1950, a aldeiazinha portuguesa em que a Virgem apareceu foi filmada no México, num ambiente inteiramente mexicano, em que os homens até usavam aqueles sombreros imensos... Na ótica de quem fez o filme, México e Portugal eram países latinos e de cultura ibérica; logo, não deviam ser muito diferentes...
Outro exemplo ainda: estou no momento trabalhando na minha tese sobre “Curial e Guelfa”, novela de cavalaria escrita por autor anônimo da Catalunha, na segunda metade do século XV, cem anos antes de Cervantes ter escrito “El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha”. Trata das aventuras e desventuras de Curial, jovem de origem modesta, mas muito bem dotado, que conseguiu alçar-se socialmente e se transformou no primeiro cavaleiro da Cristandade. Foi sucessivamente amado por três mulheres, em locais diferentes, e afinal, depois de um longo e acidentado percurso, conseguiu casar-se com a primeira delas, sua benfeitora Guelfa, duquesa de Milão.
A certa altura do enredo, Curial naufraga no Mediterrâneo e aporta no litoral africano, onde é aprisionado e tem que servir durante sete anos como escravo de um rico potentado mouro. A filha desse potentado, a bela e infeliz Tamar, apaixona-se por Curial. É ela a terceira das três mulheres que o amaram. Acontece, porém, que essa jovem é prometida, por seu pai, ao sultão de Marrocos, que se apaixonara perdidamente por ela. No drama, impossibilitada de se casar com o escravo Curial e forçada pelo pai a aceitar o casamento com o sultão, Tamar acaba se suicidando.
O anatopismo se nota numa passagem da rica e densa novela. A certa altura, quando o pai, tentando convencer a filha a desposar o sultão, argumenta que ela jamais encontraria outro esposo mais rico e mais poderoso, Tamar, para ganhar tempo, declara pai que havia feito voto de desposar o próprio Alá, consagrando a ele sua virgindade. Aí, precisamente, está o anatopismo. Na Europa cristã, existiam conventos femininos onde mulheres consagravam a Deus sua perpétua virgindade; nas tradições culturais do Ocidente cristão, isso era costume já bem assentado, mas de todo inexistia no mundo maometano, onde a única destinação das mulheres era o casamento. O autor anônimo de “Curial e Guelfa”, entretanto, ao imaginar o contexto maometano, insensivelmente projetou para ele algo que era contemporâneo, mas somente existia em outro espaço físico.
O anatopismo é menos frequente que o anacronismo. Mas também é bom tomar cuidado com ele...
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS, é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
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