Tratei criticamente, em meu último artigo, do Renascimento, período em que ocorreu progresso de vários pontos de vista, mas que teve o grave inconveniente de trazer consigo vírus e germes nefastos, que produziriam maus efeitos em série, nos séculos seguintes.
Gostaria de focalizar agora a figura de um filósofo francês que viveu num tempo em que o entusiasmo humanístico e antropocêntrico que caracterizou o Renascimento já havia decrescido muito. Já me referi a ele em artigos anteriores, nesta coluna. Trata-se de Michel de Montaigne (1533-1592), que é considerado o primeiro dos filósofos cepticistas, que questionaram o arcabouço ideológico erigido pelos entusiastas iniciais do Renascimento, mostrando uma inquietação intelectual e um desejo de sistematização que não deixava de ter certa analogia com o período final dos sofistas gregos, quando a desorientação geral dos espíritos por assim dizer tornou necessária a sistematização que seria proposta por Sócrates, Platão e Aristóteles e geralmente aceita.
Assim se exprime o Pe. Leonel Franca, em “Noções de Historia da Philosophia”( 2ª. ed., Rio, 1921, p. 99): “Anunciando a bancarrota da filosofia da Renascença, veio o cepticismo pôr termo a este período turbulento de transição. Como consequência das contradições de sistemas vacilantes e inconsistentes e prelúdio de uma nova era já o encontramos nos sofistas do primeiro período da filosofia grega. Os que na aurora dos tempos modernos mais refletem este estado mental de dúvida e ansiedade são: Miguel de Montaigne (...)”.
Na sua monumental “História de la Filosofía”, o Cardeal espanhol Zeferino González também apresenta Montaigne como o primeiro dos cépticos, e tece críticas a sua ética, que ele, naturalmente na perspectiva da Teologia Moral católica, considera imoral: “Com o pretexto de refutar todos os sistemas, para orientar-se unicamente pela razão na busca da verdade, Montaigne abalava as bases de toda a certeza e de toda a ciência; mais ainda, em casos de conflito entre a razão e as faculdades sensíveis, propende para o sensualismo. Seu cepticismo, que merece o nome de cepticismo sensualista, reúne ao mesmo tempo a dúvida no campo filosófico e o germe do indiferentismo no campo da moral” (op. cit., Paris: 1891, t. III, p. 140).
Montaigne, na verdade, era um agitador cultural, um discutidor, um questionador sistemático de tudo até então tido e havido como certo, no ambiente já cansado de Renascentismo em que vivia, no qual se havia usado e abusado da Razão humana sem que nada de novo e sólido se conseguisse alcançar. Confesso que não sei até que ponto ele, pessoalmente, concordava com tudo quanto escrevia. Eu me pergunto se ele não utilizava o estilo de chocar o leitor pelo inusitado de suas formulações e pelo enfrentamento do mais elementar senso comum, apenas para nele despertar reflexões críticas. O gênero literário que utilizou, em tom declamatório e atribuindo a personagens fictícios discursos ideológicos não necessariamente compartilhados pelo narrador, é muito frequente. O uso de formulações ou estilos ousados apenas para chocar e produzir determinado efeito também não é raro, nos últimos séculos. Usaram-no filósofos como Rousseau, Nietzsche e, em nossos dias, Foucault. E também artistas, como os primeiros que lançaram a Arte Moderna, provocantemente chocante, em contraposição aos excessos do estilo academicista anterior, e literatos modernos, que se opunham ao rebuscamento da forma, praticado pelos parnasianos e afins.
É nesse sentido de provocação cultural que sou tendente a interpretar a posição de Montaigne, quando contestou o alcance da razão humana e afirmou textualmente que “a ciência, da qual o homem tanto se orgulha, não propicia um conhecimento certo, pois seu instrumento principal, a razão abstrata, não tem maior valor que a imaginação”.
Igualmente era chocante, num século em que se endeusava a razão e em que os heróis de Plutarco eram inculcados, a todos os meninos, como modelos ideais a serem emulados e imitados, usar a análise dos predicados morais desses heróis justamente como meio de criticar a razão humana, apontando-os como fruto da vaidade do homem, que somente por possuir razão se julga superior aos animais... Hoje em dia, muitas das opiniões de Montaigne podem até afinar com o “politicamente correto” de hoje, mas naquele tempo eram por certo extremamente chocantes.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS, é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
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