Concluo hoje a série de artigos que venho publicando, sobre o curioso paradoxo psicológico de coexistirem sem conflito, no interior de muitas mentes, simpatias e pendores pela monarquia e pela república, formas de governo que no plano teórico são opostas e pressupõem cosmovisões irremediavelmente antagônicas.
Já expus alguns exemplos de republicanos convictos que não esconderam suas simpatias pela monarquia. Poderia citar, em sentido contrário, monarquistas declarados e até pretensos aristocratas com anel de nobreza do dedo, que tampouco conseguem ocultar fortes tendências igualitárias e revolucionárias... Se um dia eu escrever Memórias, contarei alguns casos bem característicos.
Vou agora, para encerrar a série, apresentar o caso de Euclides da Cunha, republicano convicto e cheio de preconceitos antimonárquicos que, no entanto, tomou uma atitude surpreendente. Primeiro, transcreverei os tópicos principais da carta que o Príncipe D. Luiz de Orleans e Bragança, filho da Princesa Isabel e líder do movimento monarquista brasileiro, dirigiu da Áustria, a 12/2/1908, ao autor de “Os Sertões”:
“Ilmo. Sr. Dr. Euclides da Cunha: / A recepção das suas obras que teve a amabilidade de enviar-me foi motivo de verdadeiro prazer para mim. Há muito tempo que sou seu sincero admirador, como já tive ocasião de manifestá-lo publicamente. / Os "Sertões", que li pela primeira vez ha dois anos, foram uma revelação para mim e têm-me acompanhado em todas as minhas viagens. Os "últimos dias de Canudos", sobretudo, atingem uma força trágica que em poucas outras narrações militares tenho encontrado. Outros capítulos do livro fizeram-me conhecer aqueles vastos territórios do Brasil central, tão importantes para o futuro desenvolvimento de nossa pátria. / Também conhecia desde pouco os "Contrastes e Confrontos". Se em matéria política não concordo com todas as suas opiniões, não há do ponto de vista literário uma linha daquela pequena obra-prima que eu não admire. Tenho lido e tornado a ler sua magistral descrição intitulada “a Esfinge”, a tal ponto que às vezes (tenho) a impressão de ter assistido àquela noite tão primorosamente descrita. Em outros capítulos, como nos sobre as secas do Ceará, são relevantes os serviços prestados pelo Sr. à civilização brasileira. (...) / Soube pelo meu amigo Guimarães que ao seu último filho deu o Sr. o nome de Luiz; é motivo para mim de satisfação o ver que em sua família há quem tenha nome igual ao meu, de forma que ao pronunciar o de quem lhe escreve guardará a sua voz um pouco da amizade que tributa ao filhinho querido. / Peço que de mim se não esqueça quando publicar outra obra e tenha certeza que daqui da Europa sigo com atenção e simpatia a sua triunfal carreira em nosso país. / Aperta-lhe afetuosamente as mãos o / patrício admirador e amigo / Luiz de Orleans e Bragança”.
Pelo teor dessa carta, fica claro que Euclides já havia, anteriormente, mandado ao príncipe obras que publicara. Vejamos agora como Euclides acolheu a missiva principesca, inicialmente no seguinte trecho de carta que escreveu a Francisco de Escobar, no dia 10/4/1908:
“Um contraste: depois de receber a tua carta, irei responder outra - do príncipe D. Luiz de Bragança!... Recebi-a há dois dias. Tem oito páginas maciças, escritas num português impecável e surpreendente. Não preciso dizer que ela não me fere a integridade republicana. D. Luiz é sobretudo escritor. Escreveu ao adversário político - ele mesmo o observa - obedecendo apenas às afinidades de temperamento. De qualquer modo é um compatriota que estuda as nossas coisas e que ama o Brasil. E como, ao mesmo tempo, parece-me ter lucidez bastante para compreender que a missão de sua dinastia está completamente acabada, irei responder-lhe desafogadamente”.
Nessa carta ao amigo Escobar, Euclides fez questão de ressalvar a sua integridade republicana. Mas em outra carta, dirigida a 15/3/1908 a um parente, foi mais franco e não escondeu o encanto que a carta do Príncipe lhe causara:
“...Todos vamos bem. Como novidade única, recebi longa carta de d. Luiz de Bragança, neto do imperador, que ultimamente passou por aqui. É uma carta de compatriota inteligente e digno; e - é incrível! - eu, velho republicano, fiquei contentíssimo de recebê-la. Está entre os meus melhores autógrafos. Pelo menos é um patrício de valor e, como homem, digno de toda a estima. O seu ato, dirigindo-se, cavalheirosamente, a um simples escritor, cativou-me pela sua própria nobreza.”.
Pouco tempo de vida restava a Euclides da Cunha. No dia 15 de agosto do ano seguinte, teve ele o fim trágico que todos conhecemos. Devido à exiguidade de espaço, neste artigo, não foram incluídas as referências documentais das cartas citadas. Mas se algum leitor desejar, é só me pedir e fornecerei de bom grado.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
OS MEUS LINKS