Comentei, no meu último artigo, que por mais que se oponham, no plano teórico e ideológico, Monarquia e República, e por mais que cada uma dessas formas de governo implique uma visão diferente do próprio universo, o fato é que no interior das mentes ambas convivem. Por mais que uma pessoa seja monarquista, ela sempre conserva no seu interior, ainda que subconscientemente, algumas pitadas de republicanismo; e por mais que alguém seja republicano, não pode deixar de sentir, dentro de si, algumas vagas simpatias por tudo aquilo que, no imaginário coletivo, caracteriza a velha e tradicional monarquia.
Vale lembrar, a propósito, que num estudo clássico, intitulado “O Patriarca e o Bacharel” (São Paulo: Martins Ed., 1953), Luís Martins analisou o caso de uma geração de jovens que saudaram com esperança o advento do regime de 1889 e pouco a pouco, ao longo da vida, foram se desiludindo com a república, chegando à idade madura francamente como saudosistas do velho regime imperial. Em “Ordem e Progresso” (Rio de Janeiro: José Olympio, 1957), Gilberto Freyre também alude ao mesmo fenômeno. São exemplos clássicos de “republicanos agredidos pela realidade”, nos quais acabou despertando o velho monarquista adormecido. Consta que, no fim da vida, até Júlio de Mesquita Filho, diretor do republicaníssimo jornal “O Estado de São Paulo”, não escondia seu saudosismo monárquico, a ponto de dizer que não entendia como seu pai, sendo homem inteligente, tinha podido defender a República (cfr. José Maria Mayrink, Trajetória de um jornalista liberal, “O Estado de São Paulo”, 25/11/2009).
Um exemplo característico de monarquista dormindo ou dormitando num republicano confesso pode ser encontrado em recente artigo do historiador e professor da UNICAMP Leandro Karnal, publicado precisamente no velho jornal dos Mesquita (O Real da realeza, “O Estado de São Paulo”, 4/1/2017), no qual comenta o seriado televisivo “The Crown”, que vem sendo exibido em todo o mundo e já conquistou um número imenso de aficionados.
Karnal aponta vários aspectos do seriado que o impressionaram. Por exemplo, a cena da velha rainha Mary se inclinando respeitosamente diante da sua jovem neta no momento em que esta recebia a notícia do falecimento do falecimento de seu pai. “The King never dies”... Morto Jorge VI, a realeza britânica continuava viva, sem qualquer solução de continuidade, na pessoa de sua filha Elizabeth. E o fato de a velha mãe do monarca falecido se curvar diante da neta (que naquele instante já não era apenas a neta, mas personificava uma instituição venerável, um ideal, uma nação, uma História, a recordação de um passado e ao mesmo tempo a esperança de um futuro para todo um Povo e, mais do que isso, para um conjunto de povos que constituiriam a Commonwealth) tem inegável grandeza. A cena impressionou Karnal, que a comenta e, ao mesmo tempo mostra certa nota de melancolia:
“O trono é mais poderoso do que seus ocupantes. Mary se inclina enfaticamente e demonstra que não existe mais Elizabeth de Windsor, mas apenas a rainha Elizabeth II. Essa é parte da magia das monarquias: a liturgia do cargo antecede e se amplia sobre as pessoas. No campo simbólico, as repúblicas sempre falharam miseravelmente diante da força histórica e sagrada do trono. A célebre música de Haendel usada em coroações, Zadok the Priest, com sua grandiosidade épica, seria inconcebível numa posse em Brasília”.
Não foi essa a única cena do seriado que fez Karnal lembrar melancolicamente da capital brasileira. Afinal de contas, se a Inglaterra, aferrada ao seu passado glorioso, insiste em se manter de pé, à maneira de uma mítica ilha de sonho, também nós, no Brasil republicano temos uma “ilha da fantasia” - como se costuma designar, com claro intuito pejorativo, a Brasília republicana. Karnal se impressionou com uma cena do velho Churchill discursando e não lhe foi possível deixar de compará-lo aos “estadistas” brasileiros da atualidade. Passo de novo a palavra a ele:
“Eu falei de ligeira melancolia. Sim, porque ouvir Churchill discursando me remete aos discursos atuais sob o trópico da crise. Temos homens preparados e já houve até pessoas cultas na presidência. Mas a falência da nossa retórica é brutal. Os políticos falam mal, pronunciam de forma péssima e, quase sempre, expressam ideias pouco elaboradas. Insultam-se, matando o decoro, a inteligência e a esperança num Brasil melhor. Por que melancolia? Porque um dia os discursos estiveram inscritos nas páginas da literatura mundial; hoje, amiúde, constam em autos judiciais de acusações recíprocas de rapinagem. Moldura e tela ficaram de qualidade duvidosa”.
As palavras com que conclui seu artigo são ainda mais expressivas da mentalidade de um intelectual inteligente que, agredido pela realidade republicana, sente dentro de si, latente, a atração pela monarquia: “Na nossa República, a mediocridade é exaltada e a ribalta política traz à tona o caráter tosco e raso dos nossos líderes. Não sou um monarquista, mas confesso que ser republicano está cada dia mais árduo... God save the Queen! Que Marianne, símbolo da República, tenha uma ou duas aulas de etiqueta e de dignidade”.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
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