Há precisamente 300 anos, no dia 19 de julho de 1717, travou-se na costa da Grécia, junto ao cabo de Matapão, uma grande batalha, completamente esquecida no Brasil e pouco lembrada até mesmo em Portugal, cuja marinha de guerra foi a grande vencedora naquele enfrentamento. Se procurarmos nas enciclopédias - sejam as tradicionais impressas, ainda presentes nas estantes da bibliotecas, sejam as modernas, vulgarizadas e bagatelizadas pelas redes de computadores - algo sobre a batalha de Matapão, mais provavelmente encontraremos informações sobre a segunda batalha de Matapão, aquela que se travou no dia 27 de março de 1941, quando a esquadra inglesa, comandada pelo Almirante Cunningham, pôs a pique três cruzadores e dois destróieres e danificou um encouraçado da frota italiana.
A que nos interessa recordar aqui é a primeira Batalha de Matapão. De alguma forma, o Brasil esteve nela envolvido. Em primeiro lugar porque, à época, o Brasil era parte integrante do império luso; em segundo lugar, porque o almirante que comandava as forças portuguesas, Lopo Furtado de Mendonça (1661-1730), Conde do Rio Grande, portava um título nobiliárquico de origem brasileira. Explica-se: Lopo era genro de Francisco Barreto de Menezes (1616-1688), o general luso-peruano que comandava as tropas luso-brasileiras nas duas batalhas de Guararapes, contra os invasores holandeses e recebeu do rei de Portugal o título de Conde do Rio Grande. O título se relacionava a um feito de armas ocorrido junto a um rio brasileiro (não pude tirar a limpo a qual se referia, pois três cursos de água da região em que Barreto de Menezes lutou eram chamados na época de “Rio Grande”, um na Bahia, outro na Paraíba, outro no Rio Grande do Norte). O título não chegou a ser usado pelo vencedor de Guararapes, mas foi herdado por sua filha Antônia Barreto de Sá e efetivado “jure uxoris” pelo marido desta, Lopo Furtado de Mendonça.
O Brasil também estava envolvido na batalha porque ela foi paga com ouro extraído do solo mineiro. Portugal, ao tempo de D. João V, que reinou de 1706 a 1750, viveu um período de grande esplendor, graças ao ouro brasileiro, descoberto em 1696. Durante 196 anos, Portugal havia povoado e colonizado o Brasil, laboriosa e pacientemente, sem encontrar ouro. Nisso se diferenciou dos espanhóis, que se lançaram tardiamente às navegações, muito depois de Portugal, mas tiveram a sorte de topar desde logo com as imensas minas de ouro do México e do Peru, sem falar nas de prata, de Potosi, na atual Bolívia.
Com o ouro do Brasil, tardio mas abundante, Portugal viveu fugazmente um período de grande riqueza. Datam dessa época grandes maravilhas arquitetônicas, como o Palácio de Mafra, o Aqueduto das Águas Livres e a Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra, como também, no campo cultural, a fundação da Real Academia Real da História Portuguesa, transmutada mais tarde na Academia Portuguesa da História, da qual tenho a honra de ser membro. No reinado de D. João V, a diplomacia portuguesa foi ativa nas grandes cortes europeias e conseguiu reviver (sem dúvida de forma bem mais modesta) os tempos gloriosos de D. Manuel o Venturoso, quando Portugal chegou a ser considerado uma potência de primeiro nível. O último ato diplomático de seu governo foi o Tratado de Madri, de 1750, que consagrou definitivamente os limites continentais do Brasil, muito além da linha de Tordesilhas. Os dois focos principais da diplomacia lusa no tempo de D. João V eram o Vaticano e a corte imperial de Viena. Profundamente religioso, o rei não apenas construía e dotava generosamente mosteiros e igrejas, mas ajudou muito o Papado. Clemente XI, que foi Papa de 1700 até 1721, foi muito apoiado pelo rei de Portugal, ao qual recompensou concedendo à arquidiocese de Lisboa a dignidade honorífica de Patriarcado. No Ocidente eram apenas três os Patriarcados, o de Roma, do qual era titular o próprio Papa, sucessor de São Pedro, o de Veneza e o de Lisboa. Em 1748, já no fim da vida, D. João V recebeu do Papa o título de Rei Fidelíssimo, transmissível a seus sucessores.
Na Guerra da Sucessão Espanhola (1702-1714), Portugal apoiara decididamente o Arquiduque Carlos, pretendente austríaco à coroa espanhola. As tropas lusas, com seus aliados austríacos, haviam chegado a tomar a cidade de Madri, em 1707. O partido que afinal triunfou nessa guerra foi o francês, mas o austríaco não se pode dizer que se tenha saído mal, pois recebeu compensações significativas e o Arquiduque Carlos não subiu ao trono da Espanha, mas foi sagrado em Viena como Imperador Carlos VI. Os laços entre Viena e Lisboa se fortificaram, pois o rei de Portugal casou com D. Mariana de Áustria, irmã do próprio Imperador.
Na época, o Islã estava mais uma vez agressivo em relação à Cristandade. O sultão Ahmed III, que governou em Constantinopla de 1703 a 1736, se empenhava em reparar as perdas sofridas pelo Crescente no tempo de seu irmão mais velho, Mustafá II. Este chegara a pôr cerco a Viena, mas, derrotado, havia perdido importantes territórios para a Áustria. Ahmed III seguiu uma política agressiva. Rearmou-se, tanto em forças terrestres quando marítimas. Derrotou os russos, comandados pessoalmente pelo Czar Pedro o Grande, e arrebatou possessões da República de Veneza – que era então uma potência marítima e comercial de grande expressão, mas não tinha forças terrestres à altura. Ahmed III também tentou novas investidas por terra contra o Império, mas foi derrotado em Petrovaradin, em 1716, pelo Príncipe Eugênio de Savoia, que até hoje é celebrado, nas canções alemãs e austríacas, como “Prinz Eugen”.
Quando Veneza se viu seriamente ameaçada, mobilizou sua grande armada de guerra, chamada a “Armata grossa”, mas, sabendo que não tinha condições de enfrentar sozinha o poderosíssimo império otomano, pediu ajuda ao Papa Clemente XI, que imediatamente lançou, como nos tempos medievais, a Bula de Cruzada. Convocou os príncipes cristãos a formarem aliança contra o Crescente. Veremos no próximo artigo em que medida essa convocação foi atendida, e qual o papel de Portugal nos atos subsequentes.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
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