Continuemos a falar da aproximação do húngaro Paulo Rónai com a língua portuguesa.
Camões, que para nós apresenta não pequenas dificuldades, curiosamente foi fácil para Rónai, porque auxiliado por uma boa tradução húngara e, sobretudo, porque conhecia bem Virgílio e Torquato Tasso, estando ainda familiarizado com a mitologia grega.
Pôs-se, a certa altura, a traduzir para o húngaro, poesias brasileiras. E então os problemas ficaram ainda mais aflitivos, porque os brasileirismos não constavam do dicionário Português-Alemão, nem de um velho dicionário Português-Francês que, àquela altura, já tinha conseguido. O resultado é que o mesmo Rónai que lia sem dificuldade Os Lusíadas, penava para decifrar, e muitas vezes não conseguia, poetas como Vicente de Carvalho e Mário de Andrade.
Um exemplo, entre muitos outros: certa vez teve que traduzir para o húngaro a palavra dezembro, dentro de um poema. Em magiar, a palavra equivalente, de mesma raiz (december) evoca, de imediato, ideia de frio intenso, de gelo, fome e miséria. Nada mais estranho à ideia que, no poema brasileiro, esse vocábulo queria significar, aludindo a um escaldante Natal carioca. Como traduzir sem trair a forma ou o fundo do poema?
Outro exemplo: como traduzir “morros cariocas” ou “gente do morro”? Morros, qualquer dicionário explicava, eram elevações de terreno, colinas, outeiros. Até aí, tudo bem. Cariocas, também ficava claro, era a designação dada às pessoas e, por extensão, às regiões do Rio de Janeiro. Mas o que queria dizer o poeta com aquela reiterada referência aos morros cariocas? Só depois de muito penar é que o tradutor conseguiu compreender a conotação sociológica e econômica da expressão. “Gente do morro” era a gente pobre, favelada, sem eira nem beira. Como ele poderia adivinhar isso, se em Budapeste as famílias mais ricas moravam exatamente nos morros, ficando as regiões mais baixas da cidade reservadas para as pessoas menos endinheiradas?
Outra expressão difícil: rede. Traduzindo certo poeta que divagava em sonhos deitado numa rede, Rónai, que nunca vira uma rede brasileira, não foi capaz de perceber a conotação de placidez e preguiça que o poeta queria transmitir com seus versos. Mas entendeu tratar-se, metaforicamente de uma rede de sonhos em que o poeta se enredava e na qual se perdia, à maneira do inseto aprisionado na teia de uma aranha... e traduziu assim, erradamente. Somente muitos anos depois se deu conta do engano.
As poesias brasileiras, traduzidas por Rónai, foram publicadas no final de agosto de 1939, num volume, sob o título “Mensagens do Brasil”. Durante três dias, o audaz e pioneiro tradutor gozou dos louros de seu feito, celebrado e bem acolhido pela crítica. No quarto dia, porém, tinha início a Segunda Guerra Mundial, com a invasão da Polônia pelas tropas nazistas, apoiadas pelos russos, com os quais Hitler acabava de firmar tratado de amizade e cooperação, o famoso tratado Ribentrop-Molotov.
Seguiram-se quinze meses de sofrimento e aflições, que pareciam ter sepultado, para todo o sempre, o hospitaleiro, mas distante Brasil, com sua hermética poesia cheia de mistérios. Mas, afinal, Rónai conseguiu escapar com vida. Chegando a Portugal, uma decepção: entendia tudo o que lia, sem problemas, mas não entendia absolutamente nada do que ouvia. Ele, que julgava já conhecer o idioma português razoavelmente, deu-se conta de que sua prosódia lhe era completamente desconhecida! O sistema luso de “comer” as vogais subtônicas na pronúncia deixou-o sem referenciais. Começou a duvidar do idioma português que julgava já conhecer.
Embarcou, então, para o Brasil. Quando desembarcou, no Rio de Janeiro, desde o primeiro momento estava entendendo tudo o que todos falavam. Era o português do Brasil, com todas as suas vogais bem pronunciadinhas, e não o de Portugal, que ele, sem jamais ter ouvido som algum, aprendera nas suas incursões linguísticas realizadas, autodidaticamente, em Budapeste!
Tinha início, então, a vida de Rónai em sua terra de adoção.
Fico por aqui, que já escrevi demais. Fica, mais uma vez, feito o convite para o paciente leitor e a amável leitor: que, vão, diretamente, ao velho Rónai. Repito o nome do livro: “Como aprendi o português e outras aventuras”.
Garanto que não se arrependerão.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS, é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.
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