PAZ - Blogue luso-brasileiro
Sábado, 21 de Abril de 2018
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - A GRANDE SURPRESA DE RÓNAI AO CHEGAR AO BRASIL

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Armando Alexandre dos Santos.jpg

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Continuemos a falar da aproximação do húngaro Paulo Rónai com a língua portuguesa.

Camões, que para nós apresenta não pequenas dificuldades, curiosamente foi fácil para Rónai, porque auxiliado por uma boa tradução húngara e, sobretudo, porque conhecia bem Virgílio e Torquato Tasso, estando ainda familiarizado com a mitologia grega.

Pôs-se, a certa altura, a traduzir para o húngaro, poesias brasileiras. E então os problemas ficaram ainda mais aflitivos, porque os brasileirismos não constavam do dicionário Português-Alemão, nem de um velho dicionário Português-Francês que, àquela altura, já tinha conseguido. O resultado é que o mesmo Rónai que lia sem dificuldade Os Lusíadas, penava para decifrar, e muitas vezes não conseguia, poetas como Vicente de Carvalho e Mário de Andrade.

Um exemplo, entre muitos outros: certa vez teve que traduzir para o húngaro a palavra dezembro, dentro de um poema. Em magiar, a palavra equivalente, de mesma raiz (december) evoca, de imediato, ideia de frio intenso, de gelo, fome e miséria. Nada mais estranho à ideia que, no poema brasileiro, esse vocábulo queria significar, aludindo a um escaldante Natal carioca. Como traduzir sem trair a forma ou o fundo do poema?

Outro exemplo: como traduzir “morros cariocas” ou “gente do morro”? Morros, qualquer dicionário explicava, eram elevações de terreno, colinas, outeiros. Até aí, tudo bem. Cariocas, também ficava claro, era a designação dada às pessoas e, por extensão, às regiões do Rio de Janeiro. Mas o que queria dizer o poeta com aquela reiterada referência aos morros cariocas? Só depois de muito penar é que o tradutor conseguiu compreender a conotação sociológica e econômica da expressão. “Gente do morro” era a gente pobre, favelada, sem eira nem beira. Como ele poderia adivinhar isso, se em Budapeste as famílias mais ricas moravam exatamente nos morros, ficando as regiões mais baixas da cidade reservadas para as pessoas menos endinheiradas?

Outra expressão difícil: rede. Traduzindo certo poeta que divagava em sonhos deitado numa rede, Rónai, que nunca vira uma rede brasileira, não foi capaz de perceber a conotação de placidez e preguiça que o poeta queria transmitir com seus versos. Mas entendeu tratar-se, metaforicamente de uma rede de sonhos em que o poeta se enredava e na qual se perdia, à maneira do inseto aprisionado na teia de uma aranha... e traduziu assim, erradamente. Somente muitos anos depois se deu conta do engano.

As poesias brasileiras, traduzidas por Rónai, foram publicadas no final de agosto de 1939, num volume, sob o título “Mensagens do Brasil”. Durante três dias, o audaz e pioneiro tradutor gozou dos louros de seu feito, celebrado e bem acolhido pela crítica. No quarto dia, porém, tinha início a Segunda Guerra Mundial, com a invasão da Polônia pelas tropas nazistas, apoiadas pelos russos, com os quais Hitler acabava de firmar tratado de amizade e cooperação, o famoso tratado Ribentrop-Molotov.

Seguiram-se quinze meses de sofrimento e aflições, que pareciam ter sepultado, para todo o sempre, o hospitaleiro, mas distante Brasil, com sua hermética poesia cheia de mistérios. Mas, afinal, Rónai conseguiu escapar com vida. Chegando a Portugal, uma decepção: entendia tudo o que lia, sem problemas, mas não entendia absolutamente nada do que ouvia.  Ele, que julgava já conhecer o idioma português razoavelmente, deu-se conta de que sua prosódia lhe era completamente desconhecida! O sistema luso de “comer” as vogais subtônicas na pronúncia deixou-o sem referenciais. Começou a duvidar do idioma português que julgava já conhecer.

Embarcou, então, para o Brasil. Quando desembarcou, no Rio de Janeiro, desde o primeiro momento estava entendendo tudo o que todos falavam. Era o português do Brasil, com todas as suas vogais bem pronunciadinhas, e não o de Portugal, que ele, sem jamais ter ouvido som algum, aprendera nas suas incursões linguísticas realizadas, autodidaticamente, em Budapeste!

Tinha início, então, a vida de Rónai em sua terra de adoção.

Fico por aqui, que já escrevi demais. Fica, mais uma vez, feito o convite para o paciente leitor e a amável leitor: que, vão, diretamente, ao velho Rónai. Repito o nome do livro: “Como aprendi o português e outras aventuras”.

Garanto que não se arrependerão.

 

 

 

 

ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOSé historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.



publicado por Luso-brasileiro às 15:12
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
arquivos

Julho 2024

Maio 2024

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Julho 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

favoritos

JOÃO CARLOS JOSÉ MARTINEL...

pesquisar
 
links